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Quinta-feira, 18/4/2002
O tempo das histórias
Domingos Pellegrini

O tempo das histórias se anuncia antes da gente entender qualquer palavra. Já viu como nenê fica olhando-ouvindo gente que está falando? Ele sabe que a boca é fonte, então fica de boca aberta, querendo "beber" a linguagem...

Nenê dorme feliz ouvindo a mãe a conversar com a visita. Aí é levado para o berço, onde continua a dormir, dorminhoco que nenê é, até que acorda irritado, bravo, traído: cadê aquela conversa que embalava o sono e garantia segurança? Então a mãe compensa com uma cantiga de ninar...

Depois, quando a criança já fala, o tempo das histórias pode começar. Mas antes é preciso criar o clima, o ambiente mágico.

Abra a janela, para o velho vento poder dar o ar da sua graça.

Coloque um incenso para queimar, ou coloque no criado umas flores num copo com água, para o perfume despertar no cérebro da criança os tempos em que nossos ancestrais dormiam pelos bosques.

Apague a luz, acenda o abajur, uma luz indireta qualquer, mesmo uma vela - para lembrar as fogueiras onde a linguagem nasceu, entre homens e mulheres a contar o que fizeram do seu dia, seus temores e alegrias.

Então conte uma boa história para seu filho, ou para qualquer criança, e estará fazendo o que de melhor pode fazer pelo seu país e pela humanidade. Você estará investindo num ser humano emocionalmente equilibrado, criativo e comunicativo - desde, claro, que sua história também seja criativa e comunicativa.

Se você não consegue criar as próprias histórias, é só lembrar de tantas de Esopo, dos Irmãos Grimm, de La Fontaine, do folclore... Você pode até ler, e já estará plantando na criança a noção de que livro também é fonte, o que resultará num leitor e num ser civilizado.

Mas é preciso contar boas histórias, né. Nada de assombrações e monstros tão pavorosos que, mesmo depois de mortos pelo herói, voltam a espantar o sono e criar o medo em vez do encanto.

Claro também que, para haver encanto, o adulto deve tornar-se criança ao contar ou ler histórias. Nunca em postura reta, em pé ou sentado, mas em postura curva, no chão, na cama, ou na indiana posição de flor de lótus, desde que voltado para a criança e acreditando no que conta. Criança detesta fingimento, então o contador precisa viver o que conta.

A voz pode engrossar, afinar, esganiçar, estridular, ranger, atolar-se, lerdear ou ligeirar, entre inflexões e modulações, sotaques e formas próprias de falar de cada personagem. Aí você olha a criança e vê que, transportada pela sua voz, ela está no mundo da história, os olhos parados, olhando longe-dentro, piscando nas falas e ações e mudanças de cena de uma boa história.

Mas não confunda boa história com história boa. Uma história boa é aquela que se dirige para o bem, e o melhor é quando uma boa história é também uma história boa. E uma boa história é aquela que tem ação envolvente, fantasia, personagens cativantes, até mesmo lições embutidas, desde que isso não transpareça, ou a criança rejeitará as lições como deixa no prato as cebolas e rabanetes.

Durante décadas contei a meus filhos, no tempo de histórias de cada um, a história do cavalinho que não gostava de comer cenoura. Uma noite, aventurando-se pelo campo longe da mãe, o cavalinho caiu num buraco grande, "porque quem não come cenoura fica sem visão noturna, não enxerga nada de noite". De manhã, a égua procura pelo cavalinho, e consegue tirar o bichinho do buraco jogando uma corda que puxa com os dentes, "porque quem come bastante cereais têm dentes fortes", claro. Bem, contei para os quatro filhos esta história, que foi uma das preferidas de todos eles, pediam toda noite, até porque eu sempre contava com algum detalhe diferente, envolvendo outros legumes e verduras...

Agora o Ministério da Educação convida para teleconferência sobre leitura compartilhada. Hoje a caçula já passou da fase das histórias, de modo que vou falar sobre uma prática antiga mas desativada.

Então, até para captar impressões deles, pergunto a Leo e Analu, os mais novos, se lembram da história do cavalinho. Que história do cavalinho? Conto a história, não lembram. Lembram muito da história do gato xadrez, que fazia viagens malucas pelo mundo, em versos e ao sabor das rimas e da música diferente a cada noite.

Analu continua sem comer cenouras nem cereais. Leo passou a comer especialmente arroz integral e cenouras, mas só depois dos dezoito anos, e garante que não foi por lembrar da história do cavalinho. São jovens alegres, afetivos, respeitosos, criativos, comunicativos. Gosto de pensar que, se não é por causa do cavalinho, só pode ser por causa do gato xadrez.

Domingos Pellegrini
Londrina, 18/4/2002

 

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