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Segunda-feira, 22/4/2002 A garganta da reclamação Eduardo Carvalho "O tema da arte é a vida, a vida como verdadeiramente é; mas a sua função consiste em melhorá-la (...) Quanto mais bárbara for a época do artista, tanto mais drástica e violenta será a sua ação. Terá de gritar no meio da tormenta." George Santayana O trabalho de Maria Bezerra da Silva, calcado em poucos mas intensos anos de estudo teórico e de vasta experiência prática, revela uma artista que, pela sua legítima preocupação em não se adaptar aos movimentos artísticos de sua época, foi desmerecidamente desprezada pela própria época em que viveu. Mas a genialidade de sua criação provocadora resiste ao infantil esnobismo reacionário que a fez esquecida, e agora, recuperada pela extensa pesquisa dos curadores desta exposição, sua obra - quase completa - se apresenta pela primeira vez a um público amplo e privilegiado. Sua desfavorecida condição social, além de marginalizá-la socialmente, dificultou ainda mais a divulgação da sua colorida pintura, da sua abstrata escultura e da sua envolvente instalação. O esforço dos pesquisadores foi rápido e agradável, porque descobriu, assim que notificados da morte da artista, uma produção singular e inédita; mas desgastante - pela complexidade da obra e dos assuntos abordados. Mas todo o empenho de uma vida aplicado ao urgente exercício de sua expressão artística não seria ainda suficiente para justificar a necessidade do público contemporâneo entender a vida e a obra de Maria Bezerra da Silva: ela era mulher, pobre, negra e artista - e é isso que, acima de tudo, nos interessa e a justifica. Confundidos pela constante pressão ideológica dos meios de comunicação predominantes e pela inadequada educação economicamente elitista, socialmente discriminatória e tradicionalmente machista e racista, mesmo os supostamente cultos freqüentadores da exposição se sentirão desorientados e agredidos. Apesar de aproveitar apenas materiais baratos e precários, pois sua condição financeira nunca correspondeu à sua dedicação irrestrita ao trabalho, a qualidade artística da sua produção é evidente e inegável. Os curadores preferiram valorizar, então, suas obras tecnicamente simples mas socialmente subversivas, distribuindo-as pelos espaços mais visitados da galeria - que, por sinal, é a própria casa em que a artista viveu - e, há duas semanas, morreu. É o impacto radical entre o inconformismo ativo da artista e a passividade conformada do espectador comum que a exposição pretende alcançar, endireitando e ampliando a compreensão da nossa própria realidade social. O choque, portanto, é inevitável - mas necessário e saudável. O que Maria Bezerra da Silva percebeu, fundamentalmente, é que há algo de errado na tradição ocidental em que nos formamos e, portanto, muita coisa de errado na própria sociedade em que vivemos. E que é preciso reclamar: a obra de Maria Bezerra da Silva é a garganta dessa reclamação. A artista apresentava uma intimidade precoce com um lápis aos quatro anos de idade, quando coloriu detalhadamente uma complicada figura que sua irmã, três anos mais velha, desenhara em uma cartolina verde-clara. Já naquela idade, Maria, como ela preferia ser chamada, revelava uma incomum capacidade de observação e, ao mesmo tempo, uma encantadora facilidade para escolher e relacionar as cores com que trabalhava. A boneca de sua irmã, composta por oito partes que exigiam cores diferentes, foi pintada em um estilo rebelde que a acompanharia por toda a sua carreira, sendo, assim, a primeira evidência de sua vocação artística. Os cabelos da boneca, desenhados lisos e finos pela irmã, ficaram roxos e encrespados depois do acabamento de Maria. Para pintar a pele clara e delicada da boneca, a artista preferiu, militando pela sua raça e contestando a complacência da irmã, o lápis mais negro que podia - e esfregou-o fortemente na suave cartolina. Os sapatos da boneca terminaram amarelos - em contraste com o preto, esta combinação sempre reaparece em suas obras - e com novos laços, vermelhos e enormes, simbolizando a firmeza com que a boneca, pela sua base (os seus pés), está ligada a um ambiente social injusto e violento (os laços vermelhos). Aos 12 anos, ainda antes de se dedicar integralmente à carreira artística, o que só aconteceria após os 16, depois de encerrar seus estudos, Maria desenhou um peixe que deve se tornar um clássico aos futuros estudiosos do seu trabalho. Supõe-se que, enquanto esperava um telefonema da sua melhor amiga, ela encontrou um jornal ao lado do aparelho que esperava tocar - e seu temperamento revolucionário impulsionou-a a pegar exatamente a capa do jornal e, embaixo do nome do diário, desenhar um peixinho afogado. Mesmo criança, Maria já percebia a intenção alienadora dos meios de comunicação de massa, e o jornal de sua comunidade local simboliza, então, a força estranguladora do sistema capitalista destruindo o inocente e indefeso indivíduo. Tudo que um peixe deveria saber é nadar, mas o tamanho das bolhas desenhadas pela artista, estranhamente grandes, sugerem que ele já não estava respirando - estava, isso sim, morrendo sufocado. O tamanho da imagem, de apenas 2,4 cm, representa, contrastando-se ao tamanho do nome do jornal, a insignificância de um ser humano isolado perante o esmagador poder do sistema de informações interconectado. O motivo da falta de detalhes no corpo do peixe, diferentemente do que precipitados observadores podem concluir, não é o imediato telefonema da sua amiga: é a elaborada intenção de não caracterizá-lo claramente. O peixinho somos nós. Ao contrário do que se pode esperar, o problema financeiro de Maria jamais limitou a variedade de materiais que ela utilizaria em sua obra. Ela encontrou à sua volta uma interminável diversidade de objetos simples e baratos, que aproveitaria para montar suas peças. O traço sóbrio e fino de um palito de dente, por exemplo, poderia se transformar em uma curva esmagada e sinistra. Durante anos, a artista reparou no grotesco movimento do seu pai arrancando, com um palitinho de madeira, pedaços de carne de sua dentadura. A hipocrisia que motivava sua pai, feio e pobre, a insistir em um hábito nojento e narcisista provocou em Maria a necessidade de tratar de um novo tema: a estrutura familiar. Aos 15 anos, a artista colocou um palito de dente, já amassado pelo seu pai, na sua própria boca, e mastigou-o ferozmente, remodelando seu formato e encharcando-o com sangue fresco. Ela precisava apontar a fragilidade da estrutura familiar burguesa - representada pelo palito, um objeto comum ao cotidiano caseiro - e exibir sua disposição para enfrentar a cruel realidade estabelecida. O novo palito, agora banhado por sangue seco e saliva espumada, tem um formato que, analisado cuidadosamente, lembra a letra "M", propositalmente a mesma da letra inicial do nome de Maria Bezerra da Silva. Maria, assim, destruiu um símbolo e, ao mesmo tempo, reafirmou a impossibilidade da convivência familiar convencional, que necessariamente termina em tragédia - tragédia da qual, com a inicial do seu nome, Maria assume ter sido uma vítima encurralada. A firmeza da estrutura familiar que conhecemos é, na obra de Maria, a mesma de um palito de dente. Aliás, a ligação entre seu nome e suas obras, assim como o contraste entre as cores amarela e preta, foi constante em sua breve mas contundente produção. Maria se identificava tanto com o seu primeiro nome, curto e popular, como com os seguintes, "Bezerra" e "Silva". Apesar de "Silva", pela suavidade da pronuncia e pela, mais uma vez, popularidade, lhe agradar, era o contraste com o do meio, "Bezerra", que compunha o par ideal para ela. O apego de Maria pelo primeiro sobrenome é patente, considerando a recorrência em sua obra do animal que ele imediatamente nos lembra. Aos 18 anos, em um simples caderninho espiral de anotações, Maria desenhou, na primeira página, um rebanho em que, curiosamente, não havia nenhuma vaca ou touro - todos os animais eram, naquele pasto ilimitado, bezerros. O pasto era amarelo e os bezerros, que análises detalhadas concluíram estar indevidamente desmamados, eram, como a boneca ou a própria artista, negros e fêmeas - ou seja: bezerras. A harmonia com que elas parecem se relacionar em um campo aberto, sem cercas, distribuídos pelo papel entre distâncias confortáveis e, especialmente, o ligeiro sorriso esboçado por alguns dos animais mostram, enfim, que existia um paraíso para Maria - mas este paraíso dependeria, necessariamente, de transformações políticas estruturais: mais precisamente, de uma revolução. Afinal, havia a precoce desmama das bezerras, o único fator que impedia que houvesse, naquela imagem, a representação exata do paraíso de Maria. Apenas a absoluta igualdade entre os homens, todos bezerras negras, e o aproveitamento comum da natureza, o campo infinito e amarelo, poderiam propiciar uma vida como ela precisa ser: perfeita. Maria Bezerra da Silva sofreu porque a superioridade do seu gênio compreensivelmente não se adaptou às mesquinharias dos interesses da vida moderna. O homem que controla o leite impede a felicidade perene. Os curadores da exposição preferiram, para agradar a intenção original da artista, apresentar o seu trabalho na mesma casa em que ela viveu. Quando Maria tinha 21 anos, seus pais, por não conseguirem mais pagar o aluguel da casa em que moravam, precisaram mudar para um bairro ainda mais barato e inconveniente. Mas as paredes da casa estavam sujas, descascadas e emboloradas, principalmente as do quarto em que Maria dormia e trabalhava. Seu pai, então, cumprindo a exigência do proprietário, obrigou-a a pintar suas paredes com o branco mais branco que existia. Maria, já preparada para construir sua primeira e única instalação, aceitou facilmente a tarefa. Em três dias, seu quarto estava impecavelmente branco e limpo. Aquele seu espaço mofado, apertado e íntimo, de repente, não existia mais. Sua pele escura, suas mãos sujas, seus cabelos sebosos não combinavam com aquele ambiente claro e brilhante que ela mesma transformou - e ela reconhecia isso. Sua aparência física estragada, porém, fazia o contraponto necessário àquela beleza que lhe era insuportável. Para completar o trabalho que confirmaria decisivamente sua genialidade, ela precisava, enfim, de apenas mais um instrumento: a mangueira azul com que seu pai regava seu pequeno jardim. Maria, então, abriu a janela do seu quarto para reforçar a iluminação do abajur, vestiu uma mini-saia e uma blusinha branca, amarrou a mangueira azul no cabo do seu armário e deu um nó no seu pescoço - e se matou estrangulada. O azul da mangueira, apropriadamente escolhido, nos remete à sua constante e iludida busca por uma inatingível liberdade - que não existe ou, se existe, foi ela mesma a estrangulou. Há duas semanas, seu corpo está exposto na mesma posição em que foi encontrado. Sua pele está roxa como o cabelo da boneca que, aos 4 anos, ela pintou. Seus olhos estão podres. O corpo da menina magrinha está inchado, e as veias, saltadas. O quarto branco, de extensão quase indefinida, é invadido pelo cheiro de excreções, uma mistura de fezes e urina, que escorrem pelo corpo da artista, e que vagarosamente também mancham suas saias brancas. O cheiro de carniça, a cena escura e assustadora em um quarto completamente branco, o inesperado encontro com a própria artista surpreendem o público, pela sua inédita ousadia. O maior mérito dos curadores foi, neste caso, conservar as intenções originais de Maria, e apresentá-la como ela realmente foi: uma artista excepcional que militou incondicionalmente pela justiça social. E que, mesmo com a garganta enforcada, terá o seu grito ecoado pela eternidade. Nota do autor: Todos os fatos descritos neste texto são frutos exclusivamente da criatividade do autor. Que qualquer coincidência com a vida real tenha acontecido é mais uma prova de que a vida imita, se não a arte, também a piada. Para ir além: "Culture of Complaint: The Fraying of America ", de Robert Hughes Eduardo Carvalho |
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