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Terça-feira, 30/4/2002
Ativismo cibernético
Rafael Lima

Corporative Flag, a bandeira corporativa dos EUA
"(...)What we got to say
Power to the people no delay
To make everybody see
In order to fight the powers that be
(...)"
--Public Enemy

"There's a shitstorm coming", escreveu Norman Mailer em algum dia da década de 60 (ou seria 70?). Tivesse Mailer feito como Rip Van Winkle e deitado para acordar 30 anos depois, sem envelhecer, poderia repetir tranqüilamente a mesma frase. A diferença, não demoraria a perceber, é que essa nova revolução não é - nem vai ser - televisionada. As câmeras estarão ocupadas mostrando os painéis de propaganda na margem de um campo de futebol asiático onde se disputará o primeiro jogo da Copa do Mundo. Ela é silenciosa, e seu palco são os subterrâneos da internet.

Sua origem data do fim da História, da queda do muro de Berlim, da chegada na nova ordem mundial e sua filha mais cara, essa mal compreendida globalização econômica, e teve por pais uma reação a todo o comercialismo que degrada o aspecto lúdico dos esportes e prostitui os valores humanos, à padronização que impõe aos modos de vestir e comportamentos, à unificação dos desejos e à transformação do mundo num enorme moedor de carne. Porque aquelas coisas que um dia já foram novidades - um M amarelo do McDonald's iluminado à noite, um cartaz de filme de Hollywood na esquina - cresceram a proporções desmedidas. Por mais que incomodassem, sempre era possível, de alguma maneira, ignorá-las ou mudar de assunto - mas não agora: sua presença se tornou opressiva, invasiva, inevitável; tentacular. Aquelas notícias dramáticas lidas nos telejornais noturnos - impressionantes, devastadoras, em terras longínquas, que muito pouco influíam na vida cotidiana - passaram a ser de suma importância, alterando terrivelmente o curso das nossas vidas.

Os protestos, ou ao menos seu lado mais plástico e exótico, despontaram para as manchetes, ganhando as páginas de jornais e as telas de Tv. Enquanto isso, por trás da barulhada que os ativistas de esquerda faziam, havia gente pensando, pesquisando, lendo e traduzindo em palavras aquele sentimento de mal estar tipicamente pós-moderno - e se organizando, e trocando informações, infiltrando memeticamente as idéias - de que houve uma derrapagem em algum momento no meio do caminho, e a perda da direção deixou tudo mais feio, exagerado, agressivo, desagradável. Assim, começaram a pipocar aqui e ali artigos, teses e manifestos, em texto coloquial como o de letras de música pop, defendendo slogans libertários como os dos hippies, humanistas até; e um pouco deslumbradas pela imensa quantidade de opções que a tecnologia colocara ao seu dispor.

Algo como o Manifesto Cluetrain, uma extensa defesa do poder dos mercados em 95 axiomas e corolários, cujo mote é "Os mercados são conversações. Seus membros se comunicam em uma linguagem que é natural, aberta, honesta, direta, engraçada e muitas vezes chocante. Quer seja explicando ou reclamando, brincando ou séria, a voz humana é genuína. Ela não pode ser falsificada" O Manifesto Cluetrain (algo como trem - ou bonde - das evidências) é uma recusa à voz impessoal da propaganda, do distanciamento que seus métodos institucionais estabeleceram entre consumidores e empresas - e dos danos que isso pode implicar para elas. Contribuiu definitivamente para o crescimento dessa mentalidade a internet, ao colocar pessoas em contato: "Uma poderosa conversação global começou. Pessoas estão descobrindo e inventando novas maneiras de compartilhar rapidamente conhecimento relevante. Como um resultado direto, mercados estão ficando mais espertos - e mais espertos que a maioria das empresas." Não se trata mais de se deslumbrar com campanhas publicitárias espetaculares e se deixar enganar pelo aspecto mais espalhafatoso e massificado da propaganda; o nome do jogo agora passa a ser o tratamento personalizado, relevante - humano.
Semana da Tv desligada / Tv Turn Off Week
Também criticando essa excessiva tendência corporativa nas empresas e nos negócios surgiu a Adbusters, "um sistema global de artistas, ativistas, escritores, piadistas, estudantes, educadores e empreendedores que querem levar para a frente o novo movimento de ativismo social da era da informação". A Adbusters teve sua primeira reportagem no Brasil publicada na revista Trip, que se alinha razoavelmente em termos editoriais com a publicação periódica da Adbusters, a ponto de manter uma coluna periódica deles. Situados em Vancouver, Canadá, mas com braços espalhados por todo o globo, pretendem "derrubar as estruturas de poder existentes e forjar uma mudança fundamental no modo como vivemos no século XXI (...), mudar o modo que a informação flui, a maneira que instituições lidam com poder, a maneira que estações de TV são conduzidas, a maneira que as indústrias de alimentação, moda, automóveis, esportes, música e cultura definem suas agendas." Para atingir esses objetivos modestos, a Adbusters tem iniciado campanhas de apelo na internet, como a Semana da Tv Desligada e o Dia do Não Consumo. Ao se ler as proposições da primeira - uma semana em que não se ligará a televisão, utilizando-se o tempo que se gastaria na sua frente em encontros sociais, atividades lúdicas, ou até meditação e yoga - tem-se o tom dramático do ponto a que chegamos: não basta mais lembrar às pessoas que existe um botão de liga/desliga no controle remoto, tem que ensinar para que ele serve e como se usa... Culture Jam, o livro Um dos grande baratos da Adbusters é a cara que escolheram para seu ativismo, o culture jamming, que seria a paródia de ícones e símbolos culturais, com objetivos críticos e satíricos. Os Adbusters acreditam que o culture jamming, cuja idéia foi desenvolvida no livro Culture Jam, "pode ser para nossa era o que os direitos civis foram para os '60s, o que feminismo foi para os '70s, o que ativismo ambiental foi para os '80s", e se deleitam em detonar ícones & logotipos, subverter propagandas, expor o lado ridículo do mundo corporativo - ao mesmo tempo alertando para os problemas da concentração absurda de poder e riqueza. Sua grande paródia talvez seja a Bandeira Corporativa, uma paródia da bandeira dos E.U.A., onde as estrelas foram substituídas por ícones de grandes empresas.

Ao criticar as mega-empresas que se utilizam de astros nas suas propagandas, por exemplo, a Nike, nenhum adbuster pretende negar o extraordinário talento de Michael Jordan para o basquete, esportista que deu chance à geração que não viu Pelé jogar de ver o que é um gênio em quadra, mas de questionar a que custo cada modelo novo de tênis, apresentado de maneira sempre espirituosa nos comerciais de Tv, chegava nas prateleiras; quais os reflexos na economia dos milhões de dólares pagos no tão falado salário vitalício que Código de barras ele recebia por fazer propaganda (eu tive um professor na faculdade que dizia que a venda milionária de jogadores no futebol espanhol - batendo recordes de valores em meados dos anos 90 - era pura e simplesmente lavagem de dinheiro); perguntar quantos centavos de dólar cada trabalhador tailandês, indiano ou seja lá de qual rincão perdido recebia para fabricar em série as roupas anunciadas em catálogos tão estilosos, nas modelos mais bonitas. Os Adbusters sacaram que o único tipo de protesto possível num tempo sem ideologias, reside no último meio de expressão aberto ao cidadão comum: o consumo. Não dando audiência aos meios de comunicação. Não comprando. Recusando-se a participar da cadeia econômica que liga esportistas extraordinários a subempregados explorados, de um lado a outro do mundo.

No Logo.org A mesma crítica ao branding, o inflacionamento da cultura de grife - que depois de certo nível perde completamente o sentido, porque não se está atrás de qualidade, mas de um carimbo que comprove a qualidade, o que é completamente diferente. Pausa para a frase que exemplifica essa dissonância: "Porque o pipoqueiro de rua não tem um certificado da ISO9000, ele tem que apresentar aos seus consumidores um produto bom" - foi conduzida pela jornalista Naomi Klein no livro No Logo (já publicado no Brasil, com o título Sem Logo), fruto de uma pesquisa entre 1995 e 1999 sobre "a importância das marcas no estilo de vida, abusos trabalhistas, e resistência anti-corporativa". O pulo do gato de Naomi foi o timming perfeito de edição do livro, que o colocou nas livrarias em janeiro de 2000, ao mesmo tempo em que "movimentos contra globalização corporativa estavam explodindo na consciência média ao redor do mundo". Depois de ter sido inundada por correspondências que compartilhavam idéias do livro, ou queriam gerar ações novas na área do ativismo, Naomi decidiu estender o debate, levando-o para a internet, num site sem organização central ("nem mesmo é conduzido por mim") com o mesmo nome do livro, ou melhor, uma ponto Org (ou seja, uma organização cujo site é sua extensão no ciberespaço, pois existe também no mundo físico), fundamentada no fato de que " 'o livro que se tornou parte de um movimento', porque Sem Logo fora arrastado no embalo de todo esse ativismo recente, e eu [Naomi] fui varrida junto com ele." Como a Adbusters, como a lista de signatários do Manifesto Cluetrain, NoLogo.Org é uma organização aberta e aceita adesões e colaborações de qualquer um.

Outra organização - não por acaso também uma ponto org - similar à NoLogo na crítica das grifes é a BehindTheLabel.org, "uma revista de notícias em multimídia e uma comunidade conectada cobrindo as histórias e pessoas relacionadas à indústria de roupas global - as histórias ocultas de milhões de trabalhadores ao redor do mundo que produzem roupas, as pessoas que se preocupam como suas roupas são feitas e as corporações multinacionais por trás das Behind the label, o que existe por trás das etiquetas... etiquetas (...) apoiado por uma aliança de trabalhadores da indústria de roupas, líderes religiosos e estudantes que se levantaram para cobrar direitos humanos para trabalhadores explorados" Não se espante com a repetição do termo comunidade, que com o avanço da tecnologia de informação ganhou nova vida ao passar a denominar grupos de pessoas agora distantes milhares de quilômetros, repartindo interesses e idéias comuns. A multiplicação do número de telefones celulares, a banalização dos meios de comunicação, e sobretudo a internet chegaram para mudar a cara das antigas comunidades e do ativismo.

É importante observar que embora todos esses movimentos ocorram ao vivo e em cores no mundo 3D, utilizando-se dos recursos da rede apenas para a propaganda de suas idéias, existe um tipo de ativismo que cresceu em paralelo e é completamente fundamentado na informática, o ciberativismo, cujo objetivo, num resumo rápido, seria impedir que alguns erros desse mundo 3D se repetissem no espaço virtual. Assim, ciberativismo é recusar-se a comprar produtos anunciados via Spam, contra-bombardeando os emissários deste tipo de correspondência; é enviar e-mails apenas em plain text (ao invés de .HTML), não consumindo mais largura de banda; é não colocar arquivos .MID como música de fundo de homepages e não utilizar pop-ups de forma invasiva, enfim, é o uso racional e equilibrado dos recursos da internet para que nem eles se esgotem, nem tenha que ser necessária a entrada de algum mega-investidor para bancar essas brincadeirinhas - e exatamente aqui o ciberativismo se aproxima do ativismo do século XXI, no incentivo ao uso de programas de código aberto e na recusa às grandes corporações - incorporadas no meio da informática pela Microsoft, não raro pintada como um Leviatã - pelo receio que elas tomem conta da internet, fechando conteúdos, cobrando acessos, isolando e, eventualmente, excluindo usuários, ou seja, minando seu caráter plural, aberto, diversificado, livre.

O que todos esses movimentos têm em comum é ter sabido aproveitar a força da antiga tradição de rebeldia norte-americana, aplicada ao novíssimo potencial em exploração da internet e dos artefatos da tecnologia da informação, infectando suas idéia pelos quatro cantos. Num momento em que telefones celulares transformam adolescentes noruegueses em nômades, em que o uso compulsivo de teclados numéricos provoca mutações nos dedos de jovens japoneses, o Manifesto Cluetrain, NoLogo.Org, BehindTheLabel e Adbusters abrem o olho dos habitantes de um novo século para problemas medievais que ainda persistem, conscientizando esses habitantes globalizados com os métodos das grandes corporações - propaganda, publicidade e slogans - em direção à uma vida menos consumista, descartável e falsa, em nome de um tempo que se promete mais ecológico, integrado e justo. E o mais interessante: coloca na mãos de cada um essa responsabilidade.


E no Brasil?
O duro de se deparar com um texto assim é quando a gente lembra que mora num país subdesenvolvido de terceiro mundo e que de um lugar assim que todos aqueles canadenses branquinhos das ONGs estão falando em seus discursos... Na página da Adbusters tem uma seção só com atos de culture jam em grande escala, como gente que alterou outdoors colando cartazes por cima que modificam a mensagem inicial. Pensar em algo assim lembrando da quantidade de analfabetos, funcionais ou plenos, deste país faz dessa ação algo minúsculo. Os objetivos a serem atingidos por aqui ainda estão naqueles estágio mais básico da redistribuição de renda, educação e saúde básicas, ou seja, metas que democratizem o acesso da população ao conhecimento e aos recursos. O Comitê para Democratização da Informática tem agido, por exemplo, nesse sentido, mas não vai ser ele a corrigir as distorções (como a Ação da Cidadania do Betinho também não vai acabar sozinha com a fome). No terreno do culture jamming, há as antigas paródias de propagandas veiculadas na Casseta Popular, com fundo meramente humorístico (como são as Organizações Tabajara), mas os melhores exemplos são os banners que o Cocadaboa usa nas campanhas de antipropaganda. Pouco? É como aquela história do venededor de sapatos que desembarcou na África colonial e ao ver os nativos descalços, pensou: "hmm, que imenso mercado eu posso ter aqui..."

Rafael Lima
Rio de Janeiro, 30/4/2002

 

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