|
Sexta-feira, 3/5/2002 Quem Não Lê Não É Humano Alexandre Soares Silva Quem não lê está condenado a estar preso num lugar só. Eles não liam, e por isso eram forçados a ficar ali naquela esquina olhando o asfalto. Dez minutos, quinze, meia-hora. Se estivessem lendo, poderiam sair dali, ir para a Samotrácia; mas não liam, e estavam ali, com uma atividade mental provavelmente parecida com a da grama na qual estavam sentados. Quando passei, e o deslocamento do meu corpo criou uma brisa, a atividade mental deles talvez tenha subido drasticamente para o nível de um dente-de-leão sendo despedaçado pelo vento. Mas isso é tudo. ![]() Quem não lê, no entanto, geralmente se sente superior a quem lê. Se sente mais prático, mais direto. "Me formei na escola da vida". "Não tenho tempo para essas coisas. Trabalho muito. Quando pego um livro pra ler, sinto sono". A sensação que tenho, quando vejo alguém que se sente orgulhoso de não ler, é a que eu teria se fosse convidado para jantar na casa de alguém e, de repente, o anfitrião me mostrasse todo orgulhoso o próprio pênis guardado numa caixinha. "Não tenho tempo pra essas coisas, então mandei remover. Quando tentava usar, pegava no sono". Bom, só posso pensar- azar o seu. Grande parte do prazer da sua vida foi embora. Mas não me basta dizer que quem não lê é uma espécie de castrado; meu ponto é que ele é um boi castrado. Que pertence a outra espécie. Que uma pessoa assim está para Oscar Wilde como um pé de milho está para um macaco. Está bem, imagine o seguinte: alguém acabou de entrar num clube que existe, digamos, desde a década de cinqüenta. Ele está entrando no salão onde todos os membros estão reunidos. São cerca de cem membros, e estão de pé conversando, em grupos. O novo membro não conhece ninguém; mas digamos que é uma dessas pessoas sociáveis e práticas, e em dez minutos já se apresentou a uns vinte membros, e já guardou o nome de uns dez. ![]() Assim no caso do clube, assim no caso do clube mais vasto chamado humanidade. É um clube antigo- o que é mais um motivo para ler as atas. Quem não leu é menos membro do que quem leu. Talvez nem sequer seja membro. Claro, deve ser bem-tratado; que se sente e converse com todo mundo, e em nenhum momento seja humilhado. Mas não é bem um dos nossos, é? E talvez se sentisse mais à vontade - digamos - no clube do pebolim? Objeção Mas, pô, Alexandre, você não vê que isso é o que os totalitarismos sempre fizeram- escolher um grupo qualquer e dizer que eles não são humanos, e que portanto podemos fazer o que quisermos com eles? Resposta Bom, mas quem é que disse que humanos podem fazer o que quiserem com não-humanos? Quanto a mim, sou definitivamente a favor do anti-vivisseccionismo - que é a doutrina, um tanto fora de moda, de que aqueles que são mais desenvolvidos intelectualmente têm que defender os menos desenvolvidos, e nunca o contrário. Cabe a um anjo, por exemplo, defender um homem; um homem que quisesse defender um anjo estaria cometendo um tremendo faux pas. Esse é um princípio universal, pura e simplesmente - adultos têm que tomar conta de crianças, e se preciso têm também que se sacrificar por elas- e não o contrário. Estendendo esse princípio aos animais: sou definitivamente contra que se façam experiências médicas no José Luis Datena para o benefício da espécie humana; temos obrigação de usarmos nossa inteligência para cuidar dele, e não para fazê-lo sofrer. Só mais uma coisa, para que não pensem que estou falando de pobres. Não estou falando de pobres. Estou falando de iletrados. Isso inclui a maioria dos ricos do país. Executivos, de modo geral, são como os operários do início deste texto, mas com a seguinte diferença: a rachadura tortuosa na calçada recebeu o nome de Nasdaq, ou de Projeção de Custos para o Segundo Trimestre. Mas a falta de intelectualidade é a mesma. Ser humano, ao contrário de ser uma joaninha, é uma aquisição cultural. Para ser uma joaninha, basta nascer no corpo de uma joaninha. Mas para ser humano, não basta nascer num corpo humano - como provam os casos de todos esses exemplares de homo ferus que foram criados por lobos ou jaguatiricas. É preciso ler. Objeção Você está querendo dizer que a minha avozinha italiana analfabeta, que veio toda miudinha e cheia de garra ganhar a vida no Brasil, não era humana? Resposta É. Exatamente. Alexandre Soares Silva |
|
|