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Quinta-feira, 16/5/2002
Regras da Morte
Alexandre Ramos

Não dá pra ser feliz. Já tive oportunidade de comentar, aqui no DC, o dano que Michael Keaton (duas vezes!), Val Kilmer e George Clooney me causaram quando interpretaram Batman. Fiquei reduzido a um estado lamentável, macambúzio, sorumbático mesmo. X-Men restaurou em parte minha confiança na humanidade, e eu já estava a caminho da completa recuperação prevendo, juntamente com o renomado editor Julio Daio Borges, um bom desempenho de Tobey Maguire como o Homem-Aranha quando, como um raio num dia claro, um desses canais de tv a cabo programa Regras da vida, com o supracitado Maguire e Michael Caine. Trata-se de uma das mais competentes peças que já vi da campanha pró-aborto, e que numa estante remota da memória coloquei ao lado de Beleza americana e Tudo sobre minha mãe. Em todos eles o denominador comum é evidente: todos os personagens estão mortos, só não sabem disso. As questões referentes a sexo e drogas, os distúrbios psíquicos, a imensa solidão e frustração de todos não refletem tanto conflitos pessoais, ou, mais amplamente, uma crise de valores(1). Não se trata de uma questão "cultural". O problema é mais embaixo, ou, melhor, mais em cima. Muito mais em cima. O que falta ali, no duro, é Deus na vida daquelas pessoas. E onde não há Deus existe apenas um simulacro de vida, que nada mais é que a preparação para a morte eterna.

Beleza americana é tão mórbido que chega a provocar mal-estar. Lester (Kevin Spacey) e Carolyn (Anette Bening) há muito perderam as condições para um relacionamento com um mínimo de afeto e também não conseguem se entender com a filha, que tem uma amiguinha metida a vamp e é desejada por Lester. Por sua vez, a filha namora o filho do vizinho, sendo o rapaz um traficante de drogas (que fornece inclusive para Lester) e seu pai um militar linha-dura moralista, que levou a esposa a um estado de idiotia e no fim vai querer transar com Lester, o qual é traído por Carolyn com um figurão de sua área de trabalho.

O filme pretende ser uma crítica da classe média americana, embora caricata o suficiente para não ser levada a sério e poder ganhar o Oscar. A "autocrítica" que os americanos - gente que mais que qualquer outro povo leva a sério aquilo de que "uma imagem vale mais que mil palavras" - fazem volta e meia através do cinema é sempre de modo a limpar a própria barra, vejam todos esses filmes sobre o Vietnã, por exemplo.

Tudo sobre minha mãe vai mais ou menos na mesma linha do vale-tudo, mostrando duas mulheres que engravidaram de um travesti - uma delas e o filho da outra morrem -; mais duas atrizes - uma idosa e a outra jovem e drogada, que encenam Um bonde chamado desejo e têm um caso -; e finalmente, se não esqueci ninguém, um outro travesti que se dedica à prostituição com o nome-de-guerra "Agrado", porque, segundo ele, sempre procurou fazer tudo para agradar as pessoas.

Me parece que Almodóvar, ao mostrar de forma tocante a solidariedade entre os personagens, pretende com isso dizer que as pessoas que fazem as tais "opções" sexuais são humanas e têm os mesmos sentimentos que os outros. Certíssimo. Mas creio que o grande e absolutamente involuntário mérito desse filme, assim como o de Beleza americana, é precisamente mostrar o beco sem saída, o desastre existencial que cedo ou tarde ocorre aos que se deixam atropelar pelo bonde do desejo, quando se perde o sentido e a transcendência da vida. Ninguém ali é feliz, nem tem a mais remota idéia do que seja isso.

Quero me deter um pouco mais sobre Regras da vida porque esse filme, que encantou e vai encantar de novo a classe média e sobretudo a "elite" descrita com precisão pelo Alexandre Soares, apesar de uma apresentação quase didática da mentalidade pró-aborto(2), a faz entretanto de uma maneira mais dissimulada, e com o veneno espertamente oculto em situações-limite misturadas com cenas emocionantes, ou, como diriam alguns, "muito humanas". O espectador atento não terá deixado de notar que o cristianismo é ridicularizado na personagem de uma velha ranheta, com as conotações habituais de algo retrógrado e obscurantista.

O jovem Homer (Tobey Maguire) é criado num orfanato dirigido pelo Dr. Wilbur Larch (Michael Caine), um médico dedicado e verdadeiro pai adotivo dos órfãos, mas que não hesita em fazer os abortos que lhe pareçam necessários (ou seja, todos os que aparecerem). Ao entrar na adolescência, Homer revela um talento inato para a medicina e se torna auxiliar do Dr. Larch, mas recusa-se a fazer abortos(3).

A primeira situação-limite aparece: uma menina, que tinha tentado fazer ela mesma o aborto, chega no orfanato à beira da morte. É um argumento clássico pró-aborto: gente que tem dinheiro faz aborto em segurança, os pobres é que correm esses riscos. Mas logo depois vem o outro lado da moeda: um jovem casal, sem problemas financeiros, que pretende inclusive se casar, chega para abortar. O motivo é o de sempre nesses casos: nenhum. O bom e velho Dr. Larch está lá para ajudar, e aqui aparece o que para mim é a verdadeira face, monstruosa e cínica, dos abortistas: ninguém está preocupado com as moças pobres que morrem em abortos improvisados. O que essa gente quer é continuar com seus abortos, em suas clínicas seguras, mas não fora da lei. Porque os poderosos deste mundo gostam muito de se sentir acima da lei, válida apenas para os pobres, mas não exatamente fora dela. O que menos existe na cabeça desses malditos - políticos, médicos, intelectuais, artistas, jornalistas, o diabo enfim, é preocupação com os pobres.

Aproveitando a partida do casal, Homer vai com eles para conhecer o mundo e procurar o seu destino. Encontrando emprego como colhedor de maçãs com a mãe do rapaz, num primeiro momento recusa-se a atender aos apelos do Dr. Larch para assumir sua vocação para a medicina e retornar ao orfanato. Mas quando, em outra situação-limite típica, uma bóia-fria é estuprada pelo pai e engravida, ele resolve "ajudar", pega a maleta de médico que Larch lhe havia enviado e, com uma tremenda força simbólica, aceita seu destino de médico e seu primeiro - primeiro: o filme só mostra esse mas, como na tv, foi o que deu origem à série - gesto é a serviço da morte.

A morte do Dr. Larch o leva de volta ao orfanato, e ele assume não apenas a documentação falsa que seu mentor lhe havia preparado e o posto de médico-residente, mas a própria persona de Larch, ao dar boa-noite às crianças como o outro fazia.

O filme termina justamente com esse boa-noite, as crianças felizes no dormitório. Os espectadores ingênuos, com uma lágrima no canto dos olhos, se emocionam com a "lição de vida"(4), e não percebem em seus ombros as mãos do demônio, que sorri de prazer.

Notas

(1) Afinal, a competição exacerbada, isso aí que chamam de "liberdade sexual" e o pretenso "direito" ao aborto não são valores - até mesmo "conquistas" - da nossa cultura contemporânea?

(2) John Irving, que recebeu o Oscar de melhor roteiro adaptado, em seu discurso de agradecimento declarou apoio às organizações pró-aborto Planned Parenthood e Liga Nacional pelo Direito ao Aborto.

(3) O filme segue mais ou menos o estilo dos "romances de formação", e mostram a "evolução" de Homer, diante das asperezas da vida, de uma mentalidade "ingênua" para uma outra mais "madura", ou seja, abortista, aprendendo assim as "regras" da vida. Esse processo é reproduzido na cabeça do espectador desatento, que mais tarde, submetido ao contínuo bombardeio da campanha abortista, acreditará ter chegado por sua própria conta à conclusão de que as coisas são mesmo assim. O mesmo acontece em relação à pena de morte, liberação de drogas, casamento de homossexuais, desmoralização da religião, Nova Era e os demais elementos que constituem a anticultura, ou cultura da morte, que caracteriza os nossos dias. As pessoas são manipuladas por técnicas sofisticadíssimas de controle psíquico e ainda acham - e essa é a parte importante - que são "livres", "adultas" e "conscientes".

(4) Lição de vida é isto: "Não hesito em proclamar diante de vós e diante do mundo que toda a vida humana, desde o momento da concepção e em todos os estágios subseqüentes, é sagrada, porque é criada à imagem e semelhança de Deus. Nada ultrapassa a grandeza ou a dignidade de uma pessoa humana. A vida humana não é apenas uma idéia ou abstração: é a realidade concreta de um ser que vive, que age, que cresce e se desenvolve; de um ser que é capaz de amar e de servir à humanidade" (João Paulo II, homilia em Washington, EUA, 1979).

Observe-se que aquilo que o papa chama com precisão de "cultura da morte" consiste essencialmente em uma ideologia que, sob pretextos "humanistas", pretende destruir a vida humana especialmente nas circunstâncias em que ela é mais frágil: a gestação, a velhice, a doença e a prisão. Aborto, eutanásia e pena de morte - e em outro plano as violentíssimas tentativas de dissolução da família - são diferentes aplicações de um único e mesmo princípio ideológico a serviço do mal.

Alexandre Ramos
Teresópolis, 16/5/2002

 

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