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Quinta-feira, 23/5/2002
Sobre responsabilidade
Adriana Baggio

O que o Homem-Aranha, Rubinho Barrichello e as eleições para presidente podem ter em comum? Antes de chegar nessa relação, é preciso introduzir uma outra idéia: a da repercussão provocada pelos mecanismos da mídia de massa.

A grande vantagem da mídia de massa é o alcance da mensagem. Uma mesma idéia pode ser transmitida para milhões de pessoas ao mesmo tempo. Se a mensagem for um bom conselho, então, quase que se desculpa todos os outros males causados por essa influência maléfica que nos atinge à revelia.

O Homem Aranha, o filme, o mais buster de todos os lançados até hoje no Brasil, pode ser considerado um bom exemplo de lição de moral pulverizada. Só neste último fim de semana mais de 1,3 milhões de pessoas assistiram o filme, que estreou em 600 cinemas brasileiros. Como todo grande lançamento da indústria cinematográfica norte-americana, o Homem-Aranha foi precedido de uma agressiva estratégia promocional, para valorizar ainda mais o produto. Produto sim, porque do super-herói em si aos mouse pads que estampou, o Homem-Aranha é um grande e bem vendido produto. Já estamos habituados com essa mercantilização de manifestações consideradas artísticas, mas dessa vez foi demais. Não sei se aconteceu o mesmo em outras cidades brasileiras, mas aqui em João Pessoa o preço do ingresso para assistir o filme subiu em relação aos outros filmes da programação. A justificativa da gerência do único Multiplex da cidade é que o aumento no preço do ingresso fez parte da negociação com a distribuidora, a Columbia Pictures. Ainda segundo suas palavras, essa foi a condição para que praças pouco representativas, como a capital paraibana e Campina Grande, a segunda cidade do estado, tivessem o privilégio de assistir a estréia do super-herói aracnídeo junto com o resto do país. Parece que o assunto está tergiversando, mas na verdade é necessário contextualizar a importância do filme no espetáculo midiático atual. Feito isso, é possível voltar ao traçado original do texto.

Peter Parker, um desajeitado adolescente, estereótipo do fracote sofredor das high schools americanas, é picado por uma aranha geneticamente modificada e acaba adquirindo superpoderes. Em meio às dificuldades normais da vida de um adolescente, Peter Parker encarna o Homem-Aranha para combater o crime. No começo, ainda deslumbrado com seus poderes, Peter toma atitudes inconseqüentes e irrefletidas, o que é perfeitamente normal na sua idade. Afinal, nem todos os adolescentes são maduros e bem resolvidos como a turminha de Dawson's Creek. Essas atitudes precipitadas têm um preço para Peter, que vai desde um leve arrependimento por ter machucado um colega da escola que antes batia nele, até um doloroso sentimento de culpa por ter sido indiretamente responsável pela morte do tio. Ao adquirir os superpoderes, Peter lembra do conselho desse mesmo tio: com grandes poderes sempre vêm grandes responsabilidades. É essa a lição de moral do Homem-Aranha.

Hora de Rubinho Barrichello entrar na história. O brasileiro também adquiriu "superpoderes" ao virar piloto de uma escuderia como a Ferrari. E com seus grandes poderes vieram grandes responsabilidades. Rubinho não é apenas um piloto, mas parte de uma engrenagem que tem normas de funcionamento muito mais intricadas do que as regras de uma corrida. O piloto brasileiro, ao topar o desafio de participar de uma equipe de ponta, assumiu responsabilidades com essa equipe, com seus interesses, com os interesses da mídia. E é por isso que Rubinho não mandou seu contrato às favas na última corrida.

O problema é que o povo brasileiro, de uma maneira geral, tem dificuldade em lidar com a responsabilidade. Por isso não consegue entender as motivações que fizeram o piloto decidir por cumprir seu papel nas teias de interesse de seus patrões ao invés de pisar fundo e finalmente vencer uma corrida. Não defendo aqui a deturpação que tem acontecido com as competições esportivas, espetacularizadas pela mídia com o objetivo de gerar dividendos para seus patrocinadores. Nesse contexto, as motivações originais que regem o esporte acabam sendo relegadas em detrimento de resultados que sejam favoráveis aos que estão apostando. Mas a realidade é que Rubens Barrichello, ao assinar seu contrato com a Ferrari, concordou em jogar esse jogo de acordo com as novas regras. É um preço que ele paga pela fama e pela oportunidade de fazer parte de um seleto grupo. E é o senso de responsabilidade que leva o piloto a agir de acordo com as regras com as quais concordou.

Agora é a hora em que entram as eleições, para completar a relação indicada no início do texto. Ao contrário do personagem e do piloto, o cidadão brasileiro não está preparado para assumir responsabilidades. Votar acaba sendo uma atitude muito mais emocional do que racional. É mais fácil se eximir da responsabilidade de uma atitude tomada por razões afetivas do que encarar uma escolha feita com racionalidade, mas que pode estar errada. E é por isso que as pessoas não conseguem aceitar uma decisão como a de Rubens Barrichello - tomada com base na racionalidade. Rubinho poderia alegar que, entusiasmado com a possibilidade de defender as cores da bandeira nas pistas de todo o mundo, aceitou um contrato com cláusulas que não tinha a intenção de cumprir. Isso justificaria uma transgressão na corrida passada, que poderia tê-lo levado ao primeiro lugar no pódio. Não há brasileiro no mundo que fosse contra essa atitude.

Por não levar em conta a responsabilidade que tem no processo eleitoral, o brasileiro prefere escolher com o coração, com base em critérios subjetivos, que sempre deixam espaço para justificativas. É por isso que mesmo partidos como o PT, que sempre procuraram apresentar propostas claras e objetivas nos programas eleitorais, resolveram falar a língua que mexe com as pessoas. Ao revestir a propaganda política com um verniz emocional, a ideologia partidária torna-se mais palatável à maioria das pessoas. Vale a pena agüentar a chiadeira da ala mais purista do partido para poder falar ao coração, órgão decisor do eleitor brasileiro.

Na esperança de que alguém resolva todos os problemas, as pessoas em geral eximem-se da responsabilidade que têm nas diversas esferas onde atuam, das mais próximas às mais distantes. É por isso que o lixo é jogado na rua, que os impostos são sonegados, que a corrupção é uma prática alimentada a partir das atitudes do cidadão. Sem se dar conta do seu poder, e das responsabilidades inerentes a ele, o cidadão de uma tentativa de governo mais arejada, menos paternalista, vê-se perdido. Não se dá conta de que seus atos têm a repercussão das ondas provocadas por uma pedra jogada em um lago. Ou se dá conta, mas não suporta essa constatação, e prefere deixar a emoção decidir.

Peter Parker deixou a emoção de lado ao optar pelos seus poderes e pelas responsabilidades que com eles vieram. Ao tornar-se o Homem-Aranha, o jovem precisou abrir mão da moça que amava. Rubens Barrichello precisou abrir mão da emoção de vencer uma corrida para agir com a responsabilidade inerente à sua posição na equipe. E o cidadão brasileiro, quando vai aprender a aceitar e a lidar com o fato de ser responsável pelo destino da sua vida, da sua família, da sua comunidade, do seu país? Que o filme do Homem-Aranha, no melhor estilo ética dos super-heróis, massifique também a noção de responsabilidade entre as pessoas.

Adriana Baggio
Curitiba, 23/5/2002

 

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