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Terça-feira, 28/5/2002 Paz é conto da Carochinha Bruno Garschagen Soldados palestinos, religiosos e ativistas estrangeiros ficaram 38 dias acuados na igreja da Natividade, em Belém, construída por Constantino em 326 d.C. e reconstruída por Justiniano em 530 sobre uma gruta onde supostamente Jesus Cristo teria nascido. Um cerco militar feito por soldados israelenses manteve o grupo entrincheirado na edificação. O respeito que esses povos do Oriente Médio têm pelos lugares tidos como sagrados evitou um massacre, apesar de várias trocas de tiros entre israelenses e palestinos. É estranho que essas edificações sacralizadas se sobreponham sobre o respeito que deveria haver entre os povos - tanto da parte dos judeus como dos árabes. Estranho e que nos leva a uma conclusão cruel, mas óbvia: a paz no Oriente Médio, e não falo somente entre palestinos e israelenses, só vai se concretizar quando morrer de ataque cardíaco o último habitante daquela área ao ver o último "inimigo" que restou cair fulminado também por um ataque do coração. A convivência pacífica naquele barril de pólvora é conto da Carochinha. É cruel, mas é o óbvio. O Oriente Médio sempre me pareceu um canhão construído com uma mistura heterogênea de petróleo, barbas e corpos mutilados. A terra conhecida mundialmente a partir de 1945 como berço do povo perseguido e assassinado em parte pelo Terceiro Reich na Segunda Grande Guerra. Um pouquinho mais adiante, como o local onde a Organização das Nações Unidas (ONU) empurrou a pólvora com uma bucha (os palestinos) para ser detonada tempos depois. Foi em 1947, dois anos depois do final da Segunda Grande Guerra, que os líderes sionistas aceitaram o plano da ONU sobre a partilha que concedia ao povo judeu 8.800 quilômetros quadrados, principalmente no Deserto de Negev, em território ocupado pelo povo árabe. O novo Estado nascia com 538 mil judeus e 397 mil árabes. Oficialmente, Israel se torna país em 1948 com a leitura da declaração de independência feita por David Ben Gurion no salão do Museu de Tel-Aviv. E para não renegar o dito popular de que brasileiro é igual a mato, está em todo lugar, coube a Osvaldo Aranha anunciar o nascimento de Israel. Aranha presidia a II Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas, que aprovou a resolução 181 e determinou a divisão da Palestina num estado judeu e outro árabe. "Foi preciso fundar um país, à custa dos árabes, pois esta era a terra deles, o que é injusto, mas foi assim, não tínhamos para onde ir", relata sensatamente o romancista Yoram Kaniuk, numa entrevista ao Estadão há três anos. "No começo, 300, 400 mil judeus chegaram aqui, dos países europeus, ninguém os queria, Brasil, Argentina, Estados Unidos, Inglaterra, ninguém". Como Kaniuk, há outras vozes prudentes tanto em Israel como no que restou da Palestina. Sim, não dá para colocar um povo na mesma sacola da Casas Bahia, no apoio incondicional às barbáries feitas pela conquista ou manutenção de um território. Na mesma edição especial sobre os 50 anos de Israel, produzida pelo Estadão, outro escritor judeu, Iossi Banai, disse que a existência de seu país representava uma tragédia. "Nós vivemos em cima de um barril de pólvora. A sensação é de que aqui não existem líderes sábios", disse. Eles estão lá. Existem. As vozes dissonantes existem, mas são minoria e, geralmente, não são ouvidas. Aliás, como prestar atenção em palavras de tolerância ao olhar no canto da sala a foto do irmão; da esposa; do filho; dos pais; do avô; do amigo; morto num ataque suicida, numa troca de tiros ou num atentado a bombas? Como engolir os cadáveres de todos os próximos que se foram porque se disputa mesquitas, igrejas, muros, chão batido? Não se trata de uma justificativa da manutenção dos conflitos até agora. Só não esperemos que sociedades que ainda sentem na boca o gosto de sangue dos parentes assassinados acordem um belo dia, abram a janela e chamem para tomar chá os soldados que lhe arrancaram um pedaço da existência. Naquele turbilhão não há mocinhos ou bandidos. A maior parte carrega as duas faces da tragédia. E as usa conforme a conveniência. Alguém acredita que Arafat seja um senhor bondoso? Porque nosso conceito sobre Ariel Sharon já está formado. Os palestinos foram violados pela ONU e, depois, pelos israelenses. Isso nos faz ter uma tendência a ver os árabes com maior compaixão. Então, fica difícil imaginarmos, mesmo sabendo, que os árabes mataram várias crianças de Israel. Perdoem-me a crueldade, mas veja a cena: uma criança brinca num vilarejo e encontra uma boneca. O brinquedo foi deixado lá por militares palestinos. Carrega uma bomba autodetonável. Boom! Do lado de lá, outra cena: casais de idosos, adultos, crianças e adolescentes num restaurante árabe. Um homem-bomba se aproxima da entrada. Pede a Alá que lhe abra as portas do paraíso. Boom! Para obter o que julgam direito sagrado de propriedade cada povo recorre a expedientes psicológicos de convencimento. O argumento não é pela persuasão, e primeiro lugar. A emoção é posta à frente. Os judeus usaram muito bem a perseguição e morte pelos nazistas para convencer a ONU da necessidade da construção de Israel. Os palestinos, depois de serem obrigados a sair de territórios que ocupavam há décadas, recorreram ao papel de vítimas da ocasião. Cada qual com suas motivações e fundamentos. No caso dos palestinos, além desse fator, sofreram muito pela visão equivocada, imprevidência e espírito demagógico da maioria dos governos árabes. Seus líderes rejeitaram várias oportunidades de paz ou de diálogo que se chegasse a um acordo. O plano de partilha da Palestina votado pela ONU foi maciçamente rejeitado pelos árabes. Essa escolha hoje é vista como um erro que levou aos conflitos que se mantiveram. Na época, entretanto, algumas razões históricas levaram à rejeição da proposta. Cem anos atrás, aproximadamente meio milhão de árabes viviam na província otomana (turca) da Palestina. Abrigavam por lá 24 mil judeus (Naquele momento nascia o sionismo). O número de judeus aumentou para 60 mil em 1914 e não parou de crescer nos anos seguintes, na região sob o domínio da Grã-Bretanha, que recebeu um mandato para administrar a Palestina pouco depois do fim da Primeira Guerra Mundial e da dissolução do Império Otomano. Os primeiros conflitos se deram em 1921. Nos anos 1930 a situação se agravou. Apesar de os árabes continuarem sendo maioria, cresce a imigração de judeus oriundos da Europa após a Segunda Grande Guerra. A partir daí começa o drama dos árabes palestinos. Em 1947, eram proprietários - governo e civis - de 93% do país. Os judeus ocupavam 7% do território. Com a partilha votada pela ONU, perdem quase metade do que possuíam. Os judeus ganham 55% do país mesmo sendo minoria. A proclamação do Estado de Israel e os conflitos posteriores levam os judeus a conquistar mais 22% do território. Cerca de 900 mil palestinos (dois terços da população na época) foram expulsos de suas casas. Esse deslocamento ganhou força com o massacre de Deir Yassin. Um ataque militar de Israel matou 250 habitantes daquela pequena cidade. Várias mulheres e crianças. E o Estado árabe definido pela ONU? Virou suco. Os israelenses não queriam mais saber de conversa e, a cada conflito em que saía vencedor, amealhava mais um naco do país. A Cisjordânia (anexada pelo Emirado da Transjordânia, então rebatizado como Reino da Jordânia) e a Faixa de Gaza (que passou a se administrada pelo Egito), por exemplo, só escaparam da sanha de Israel por conta do armistício de 1949. Escaparam por alguns anos. O ano de 1967 reservava algo pior aos árabes. O embate batizado de Guerra dos Seis Dias, em junho daquele ano, permitiu aos israelenses tomar a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. Israel não parou. Além de determinar como "terras de Estado" zonas não cultivadas - locais que serviam ao assentamento de colônias judaicas -, os israelenses resolveram confiscar um quinhão considerável de terras privadas árabes, principalmente no setor Leste de Jerusalém e no Vale do Jordão. Os anos passaram, conflitos se acumulavam nas traças da história e líderes dos dois povos não se entendiam quanto à propriedade do pirulito. A luta pela terra tem como pano de fundo fatores econômicos, políticos, estratégicos e militares, que dão o tempero ao aspecto religioso (O islamismo não distingue o político do sagrado). Mas a construção de Israel no território antes dos árabes tem ligação direta com o fator religioso. Os judeus escolheram a Palestina como sede do Estado de Israel porque a tradição religiosa judaica valoriza a terra da palestina como lar prometido por Yavé aos descendentes de Abraão, ao povo escolhido. Na época dos movimentos sionistas outras propostas foram apresentadas, como a construção do Estado na Ásia Central e na África, na região de Uganda. Voltando à Era pré-Cristã, é importante verificarmos que Jerusalém já existia quando os judeus chegaram com o rei Davi. De acordo com o ex-professor de religião, Ricardo Mário Gonçalves (USP), em entrevista à rádio CBN alguns anos atrás, era a cidade de um povo chamado jebuzeus, um povo cananeu, cananita. As evidências históricas revelam que o rei Davi teria se aliado aos jebuzeus para ocupar Jerusalém e fazer dela sua capital. Davi, contudo, não consegue realizar seu projeto. Coube ao seu filho Salomão construir o o templo sagrado que havia projetado. Mais tarde, o templo é destruído pelos babilônios. Quando Ciro liberta os judeus do cativeiro o templo é reconstruído por um líder chamado Zorobabel. O recém-criado núcleo judaico dura vários séculos, de forma mais ou menos independente. O templo ganha status de centro religioso e político. Novamente, o lugar é destruído, dessa vez pelos romanos. Nos anos 70 da Era Cristã, pouco depois da destruição, ocorre uma nova revolta judaica. O templo vira monumento pagão. Eis que o imperador Adriano - o que seria do mundo sem a história dos imperadores - constrói ali um templo de Júpiter e muda o nome da cidade para Héliacapitolina, segundo o professor Ricardo Mário Gonçalves. Quando surge o islamismo, explicou, o templo torna-se um lugar sagrado para Maomé, porque há uma tradição registrada nas escrituras islâmicas, segundo a qual Maomé teria feito uma viagem mística aos céus a partir do templo de Jerusalém, montado num cavalo. A mitificação transformou o templo num local sagrado para os islâmicos. Tanto que quando eles tomam Jerusalém, expulsando as autoridades políticas cristãs, ficam indignados ao encontrar a Esplanada do Templo fazendo as vezes de, pasmem, depósito de lixo. Limpam tudo e iniciam a construção de monumentos sagrados, como a Cúpula do Rochedo e a Mesquita de Al-Aksa. Acreditar nos discursos e argumentos (muitos bem fundamentados) de que a paz no Oriente Médio é possível, diante do histórico que há, soa como agressão ao bom senso. Me faz rir sem achar a mínima graça. E não ter qualquer dúvida da capacidade humana de nunca chegar a um entendimento razoável. Elegia Stephen Jay Gould. O paleontólogo que sabia escrever. O geneticista que nos trazia informações e afirmações tão sedutoras quanto lógicas. O biólogo evolucionista que declarou ser uma estupidez pensar que somos o ápice da evolução. O professor de zoologia da Universidade de Harvard que trouxe a ciência aos degraus do homem comum. No site Edge (www.edge.org) está lá sua foto. Uma legenda embaixo destaca seu nome e a fatídica data (1942 - 2002). Um parágrafo de um ensaio seu vem logo abaixo: "There is no progress in evolution. The fact of evolutionary change through time doesn't represent progress as we know it. Progress isn't inevitable. Much of evolution is downward in terms of morphological complexity, rather than upward. We're not marching toward some greater thing." Gould viajou sem levar o bilhete de volta na segunda-feira, dia 20. Saiu de sua casa em Nova Iorque para um chá com Charles Darwin. Livros publicados no Brasil: - A Falsa Medida do Homem (Martins Fontes); - A Galinha e seus Dentes - E Outras Reflexoes (Paz e Terra); - Darwin e os Grandes Enigmas da Vida (Martin Fontes); - Dinossauro no Palheiro (Cia. das Letras); - Lance de Dados (Record); - Viva o brontossauro (Cia. das Letras); - O Milênio em Questão (Cia. das Letras); - O Sorriso do Flamingo (Martins Fontes); - Os Dentes da Galinha (Paz e Terra); - Dedo Mindinho e Seus Vizinhos (Cia. das Letras). Bruno Garschagen |
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