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Terça-feira, 4/6/2002 Música do acaso Rafael Lima A humanidade nunca soube lidar muito bem com o acaso. A inconstância das chuvas na época do plantio, um eclipse solar ou o nascimento de uma criança coberta por um pelico são exemplos de manifestações naturais mal recebidas, porque incomuns, por fugirem do ciclo natural e eterno de todas as coisas. Desde os tempos primordiais registra-se a existência de sacerdotes, adivinhos, oráculos, astrólogos, todo o tipo de gente que, de maneira mais ou menos científica, mais ou menos espetacular, se propunha a ler e traduzir para seus conterrâneos a linha do destino, através da disposição de astros no firmamento, das entranhas de um bode ou dos... acontecimentos extraordinários. É nas tentativas de interpretar, compreender ou, ao menos, assimilar esses acontecimentos que muito da História se escreveu, evoluindo de oferendas de víveres aos deuses às listas de F.A.Q. dos softwares. O advento dos tempos modernos bagunçou o coreto, criando interferências onde a lei de explicação dos fenômenos já não era genérica. Escritores como Paul Auster, Kafka e Ionesco exploraram em seus escritos as interferências do acaso no cotidiano, a lógica do absurdo, chegando ao limite último da fantasia, quando não é mais possível separar verossimilhança de verdade. O que nos leva ao Laerte. Ou, para os menos íntimos, Laerte Coutinho. O criador dos Piratas do Tietê. O autor das tiras em quadrinhos do Condomínio. Da Gata & Gato, do Fagundes, o puxa-saco, do Síndico, do Zelador, do Don Luigi. O Laertón de Los 3 Amigos, junto com Angel Villa, Glauquito e Adón, porque todo trio que se preza tem sempre um quarto elemento, o fator Dartagnan. O que faz o Overman. Laerte, gente: o que fazia histórias em dupla com o Glauco, na revista Geraldão; o que desenhava para a Chiclete com Banana. Um que foi premiado em todas as edições do troféu HQ Mix. Tá bom, vou apelar: Laerte, aquele que era redator da TV Colosso... Nesse começo de ano o Laerte lançou não um: dois álbuns com compilações de seu trabalho, raridades sem preço em um país que demora décadas para colocar lombada e papel couché em histórias que tiveram que se submeter ao jugo do papel jornal para chegar mensalmente ao leitor, com as originalíssimas visões do autor para os inesperados sucedâneos do acaso. O primeiro, Histórias Repentinas, foi editado pela Devir, importadora e distribuidora de gibis paulistana, desde o começo incentivando a Hq nacional; o segundo, Deus 2 - a Graça Continua, com seleção das tiras diárias centradas nesse personagem que ficou tão divertido sob a pena do Laerte. Histórias Repentinas é o melhor dos dois lançamentos por vários motivos: encerra histórias longas, onde o artista pode demonstrar mais vigor, ousadia e criatividade no desenvolvimento de suas idéias (ao contrário da urgência da tira); compila contos da época em que Laerte ainda produzia trabalhos mais longos, algo que não acontece há 10 anos (com honrosas exceções para o site Cybercomix, como A Vida, a Morte e outros Detalhes ou As Aventuras Rocambolescas de Dionísio Galalau, essas, no entanto, para serem lidas na tela do computador); reúne uma seleta dos trabalhos que não envolviam personagens fixos, ou seja: algumas de suas melhores páginas. Deus 2 - a Graça Continua é a segunda compilação das tiras diárias que Laerte produz centradas em... Deus. Aqui, antes de mais nada, o que se deve notar é a extrema ousadia em entrar no terreno do sagrado com seu humor: por muito menos do que isso Angeli e Adão Iturrusgarai sofreram com cartas de leitores, ombudsmen, editores e todos as discussões sobre censura, liberdade de imprensa e até onde se pode fazer humor que pipocam nessas horas. Na 2ª Bienal Internacional de Quadrinhos, em 1993, uma mesa redonda com Ziraldo, Wolinski e Chico Caruso (duas influências assumidas e um contemporâneo de Laerte) durou umas 3 horas para não chegar à conclusão nenhuma se o humor deveria ter limites. Dois anos depois, na Bienal do Livro, Laerte afirmaria que a pergunta é estúpida, porque não haveria sentido na noção de limites quando se fala em humor. Essa é a impressão que fica quando se pensa em uma tira humorística cujo personagem central é Deus, uma das grandes forças atuantes na equação do acaso. Mas que ninguém pense que o Laerte partiu para a ironia absurda de um Crumb, ou para o ceticismo não-arreda-pé de um Millôr; sua linha é mais suave, divertida, quase poética, talvez por isso mesmo angariando adeptos mesmo entre os religiosos - Frei Betto é quem fez a introdução da primeira coletânea (Deus segundo Laerte), cujas palavras merecem a citação: "O que Laerte faz é um santo humor. Livra-nos daquela imagem de um Deus carrancudo, mal humorado, provedor do inferno, para nos aproximar da imagem evangélica que Jesus nos passa: Deus é amor, mais íntimo a nós do nós a nós mesmos, como dizia Santo Agostinho. Portanto, se brincamos com tudo o que nos é íntimo, porque excluir Deus de nosso bom humor e carinho?" entrevistado por Revista Panacea Cybercomix - site de Hq Rafael Lima |
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