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Quinta-feira, 6/6/2002 O Primeiro Jogo Assunção Medeiros Esse primeiro jogo do Brasil na Copa do Mundo está com gostinho de primeiro dia de aula. Sempre que eu voltava às aulas quando criança, sentia que de alguma forma a escola estaria diferente. Arrumava e desarrumava a mochila cem vezes, folheava carinhosamente os cadernos encapados pelo meu pai, prometendo a mim mesma que naquele ano ele chegaria ao fim todo bonito, com perfeita caligrafia, e toda a matéria copiada. Os livros, eu me prometia, estariam com os deveres todos feitos, sem rasuras nem orelhas. Todo ano eu me dizia: esse ano vou ser uma aluna perfeita! Vou chegar em casa e estudar uma hora inteira antes de brincar. Não vou deixar acumular nenhum exercício de matemática. Vou treinar caligrafia todos os dias. Não vou deixar as pesquisas de ciências para a última hora. Todo ano era a mesma coisa. Não é à toa que dizem que o inferno está cheio de boas intenções. As minhas intenções eram sempre as melhores, e tenho que dizer em minha defesa que eu tentava. Durante o primeiro mês de aula, eu bem que tentava seguir minha autodeterminação de ser a aluna perfeita. Mas aí... aparecia um livro tão interessante, que eu tinha de ler... e não era o da escola. Alguns brinquedos simplesmente gritavam pela minha atenção. "Vou estudar uma hora depois do almoço" virava "vou estudar uma hora depois do lanche", e então uma hora depois da janta, ou uma hora antes de dormir. Chegava a hora de dormir, mas a hora de estudar não tinha chegado. Quando eu percebia, o ano estava no meio, e minhas resoluções tinham voado pela janela. O caderno, que tinha começado o ano todo colorido, cheio de margaridas substituindo os pontos dos 'i' , estava aquela bagunça, a caligrafia prejudicada pela pressa e pela canhotinha, que borrava o que eu escrevia. Os deveres feitos, mas de qualquer jeito, na pressa de entregar. A minha sorte era que eu sempre fui uma aluna quietinha, que prestava atenção ao professor na aula, e isto me servia muito na hora das provas. Boa aluna, mesmo, só no que eu gostava: português, inglês e biologia. Os fanáticos por futebol devem estar se perguntando: "e daí?" Bom, prestem atenção na maneira como o Felipão preparou a equipe dele: arrumou cuidadosamente os bons meninos na bagagem, bad boy nem pensar, e está aparentemente tão cheio de boas intenções quanto eu. Durante as eliminatórias, quando o Brasil estava com a classificação por um fio, ele dizia que seria campeão do mundo: "na hora da Copa será diferente". Pois é. Esse ano será diferente. A equipe será diferente. Os resultados serão diferentes. Serão os jogadores perfeitos! Todos suando a camisa, ninguém pensando em seus patrocinadores ou nos passes milionários. Ninguém querendo fazer bonito para os cartolas da Europa. Ninguém, mas ninguém mesmo, vai ter medo de dividir uma bola com os turcos, nem com qualquer outro adversário. Todos vão dar o máximo, e o Brasil volta com a taça. Agora eu acho que os moços futebolistas começaram a perceber a semelhança entre o primeiro jogo e o primeiro dia de aula. Resta saber o quanto de tudo isso é apenas boa intenção, e o quanto disso é determinação de atleta em competição. Mas como a Copa é mais curtinha que o ano letivo, vamos torcer para que o Felipão consiga manter seus meninos na linha até o final dela. Se é que manter na linha tem algo a ver com conquistar uma campanha deste tipo. Isso, é claro, partindo do princípio que conquistar essa taça tenha uma importância na vida dos brasileiros. Quando eu era criança, eu imaginava que a Copa do Mundo era algo portentoso, muito importante mesmo, e que perder aquela competição era o mesmo que uma derrota em uma guerra. Eu acho que a maioria dos brasileiros adultos ainda pensa assim. Mas será que é mesmo? Será que é tão importante para a vida do nosso país a conquista de uma taça de metal, mesmo que seja metal precioso, por 11 marmanjos que correram por um mês atrás de uma bola de couro? Nós temos este ano uma "copa" bem mais importante, a copa política da eleição, e me parece que todos deviam estar bem mais ocupados com isso do que com um evento esportivo. Ou com o carnaval. Ou com o feriadão disto ou daquilo. Como pode um povo, com seu país na situação que está, às vésperas de uma eleição geral, parar tudo, chegar mais tarde no trabalho, para acordar de madrugada e assistir a um jogo de futebol? Como pode um país parar sua vida econômica para assistir um evento esportivo, e saber que - no caso de uma vitória - não poderá contar com uma boa parte de seus empregados, que estarão comemorando em alguma batucada da cidade? E a maior loucura de todas: como podemos sentir que o resultado desta copa afetará o resultado da copa eleitoral, muito mais importante, que verdadeiramente terá efeito e importância para todos nós? Eu nunca repeti ano, mesmo não cumprindo minhas promessas de ser a aluna perfeita. Tomara que o povo brasileiro também passe de ano. Assunção Medeiros |
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