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Sexta-feira, 7/6/2002 A Guerra contra a Chatice Alexandre Soares Silva A guerra está por trás de tudo quanto é divertido neste mundo. Jogos, por exemplo - xadrez, pingue-pongue, futebol, buraco - são obviamente formas ritualizadas, estilizadas, de guerra. A ciência é uma guerra contra a burrice; a medicina contra a doença; a arte contra o clichê. Toda história é a história de uma guerra, que passa a receber o nome de Conflito - o protagonista em conflito consigo mesmo, com outra pessoa, ou com o mundo. Sexo, também, é obviamente uma forma de guerra: há arranhões, mordidas e olhares furiosos; há uma invasão, um bombardeio e uma retirada. Há até um certo Prisioneiro de Guerra - que, às vezes, é devolvido depois de nove meses, que foram passados assobiando A Ponte do Rio Kwai no útero. Tudo isso pra dizer que existe uma guerra sendo travada desde o início dos tempos. Ela mesma é muito divertida: é a Guerra contra a Chatice. Um dos fatos mais peculiares dessa guerra é que as pessoas que estão do outro lado, lutando pela Chatice, nunca admitem que é por isso mesmo que estão lutando. O objetivo, segundo eles, é sempre outro - e eles sempre estão dispostos a nos explicar, da maneira mais pausada, sóbria e chata do mundo, que motivos são esses. Não se engane: eles estão lutando pela Chatice mesmo. Mas mencione o nome de Edward Lear no ouvido deles, e se eles souberem alguma coisa, tremerão - porque Lear foi, sem nem mesmo dar por isso, um dos grandes soldados nessa guerra . 190 Anos de Charme Existem algumas disputas em que vemos as duas partes discutindo, e achamos que uma das partes está errada, e a outra certa; mas as duas nos parecem tão chatas que simplesmente não nos importamos. Se a parte que nos parece certa vencer o debate, embaraçadamente nos levantamos para cumprimentá-lo; mas no meio do aperto de mão não contemos o bocejo. Pior, a própria causa que ele defende é chata, por mais correta que nos pareça; o assunto todo é chato, e o próprio mundo mental em que os dois debatedores existem é chato. E esse é o mundo em que os adultos sérios, de terno cinza e rosto amassado, vivem perpetuamente: discutindo com voz pastosa assuntos como Propriedade Privada X Socialismo. Até acho que a propriedade privada é melhor do que o controle estatal. Mas que assunto chato! Este ano em que escrevo fazem 190 anos que nasceu um inglês que também pensava assim. O nome dele é Edward Lear; e, como ele mesmo escreveu, how pleasant to know Mr. Lear. Ele também escreveu, num diário: "Vejo a vida como sendo basicamente trágica e fútil, e a única coisa importante é fazer piadinhas". Ele fez piadinhas: na forma de versos e na forma de desenhos. Se houvesse uma guerra entre cem mil Edward Lears, lutando com tortas e conchas e varetas, e cem mil Homens Sérios, lutando com gás mostarda e fuzis, eu lutaria do lado do fazedor de piadinhas - até a morte. Seria um prazer se eu pelo menos conseguisse matar um ou dois debatedores de programas de negócios e economia, antes de morrer. Lear, note, nasceu em 1812- o mesmo ano em que Charles Dickens . Ambos tiveram pais que foram parar na cadeia por dívidas; a família dos dois conheceu a prosperidade seguida da pobreza. Mas veja aqui a diferença de temperamentos: Dickens fez disso uma obsessão com pobreza e três mil páginas de choramingos; Lear quase nunca falava do assunto, e quando o fazia, era com piadinhas no estilo nonsense. Penso, por exemplo, no poema The Courtship of the Yonghy-Bonghy-Bò, em que o protagonista da história vive na floresta com "duas cadeiras velhas, e meia vela - uma jarra velha sem alça", e mais nada; ou numa carta que ele escreveu para seu amigo Fortescue, pedindo a ele que intercedesse junto ao novo rei da Grécia para que Lear fosse empossado como "Alto Lorde da Besteira e Produtor de Bobagens, com permissão de usar um chapéu de burro (ou mitra), mais três libras anuais de manteiga e um porquinho - e também um burrinho para me carregar". Com todo o talento que tinha, e inclusive com todo o senso de humor, Dickens fazia parte do outro exército: era eminentemente um homem sério, que tomava café da manhã com o primeiro-ministro e gostava de falar de finanças. Lear, durante um período, foi o professor de desenho da grotescamente séria Rainha Vitória; mas vivia cometendo gafes na frente dela e realmente preferia a companhia de crianças. Na casa do Conde de Derby, onde viveu durante um certo tempo desenhando a coleção de pássaros do dono da casa, Lear almoçava com os criados. As crianças da casa terminavam o almoço mais cedo e iam correndo para o andar de baixo, para a companhia de Lear, que fazia desenhos e rimas para elas - tudo aquilo que mais tarde seria publicado com o nome de Book of Nonsense. Lear foi gordinho, e terminou gordo; fez centenas de caricaturas de si mesmo como uma bola nariguda. Era gentil - discretamente, quase assexuadamente, homossexual - foi rejeitado pelos dois ou três amantes que teve - e ganhou a vida, precariamente, pintando paisagens italianas, gregas, francesas. Suas rimas e desenhos nonsense (absurdistas) eram uma distração, uma brincadeira; mas é por essas brincadeiras que é lembrado. No momento não consigo pensar em nenhum outro escritor que consiga passar tanto charme para uma folha de papel. Charme é a palavra-chave aqui; e acho que Lear - gordo, barbudo, narigudo - era uma espécie de Audrey Hepburn das letras. Limeriques são poemas curtos, de cinco linhas, num esquema de rimas aabba. Foi Lear quem popularizou os limeriques; e, como notou a crítica Jackie Wullschläger, os de Lear são geralmente sobre pessoas excêntricas tendo algum problema com a sociedade. José Paulo Paes traduziu este, cujo original vem logo abaixo: "Havia uma moça cujo olho tinha o tamanho de um repolho Quando ela o arregalava, todo mundo se espantava. E dizia: 'Nossa, que trambolho!' There was a Young Lady whose eyes were unique as to colour and size; When she opened them wide, people all turned aside, And started away in surprise." Limeriques são quase sempre cômicos. Lear, como eu disse, popularizou a forma; depois dele Tennyson, Kipling e W.S.Gilbert escreveram limeriques; mas de modo geral, quando se pensa em limeriques, se pensa em poemas cômicos obscenos. Até Isaac Asimov, o escritor russo-americano de ficção-científica, escreveu dois livros muito divertidos de limeriques obscenos junto com o poeta John Ciardi; e, se você rever Batman Returns, vai reparar que o Alfred diz ter pensado num limerique ao ver a Mulher Gato. E, num episódio de Friends, o chefe de Jennifer Aniston, pra provar que é muderninho e prafrentex, pede a ela que recite um limerique. Mas os limeriques de Lear não são obscenos, só absurdos - neles o que geralmente é muito comprido é o nariz. Há centenas de narizes na poesia de Lear: narizes tão compridos que têm que ser carregados pelos criados; narizes nos quais todos os pássaros do ar se empoleiram ao mesmo tempo; e até mesmo narizes luminosos, como no tragicômico, melancólico The Dong with a Luminous Nose . Lear escreveu livros de geografia absurda, botânica absurda, abecedários absurdos e até mesmo receitas absurdas - uma delas terminava com o conselho: "Sirva num prato limpo e jogue tudo pela janela o mais depressa possível". Mas para mim o melhor são os poemas um pouco mais compridos: The Duck and the Kangaroo, ou The Owl and the Pussycat , onde a coruja e o gatinho se casam, e - They dined on mince, and slices of quince, Which they ate with a runcible spoon; And hand in hand, on the edge of the sand, They danced by the light of the moon... Runcible: essa palavra vai ser um tanto difícil de achar no dicionário, mas Lear não a criou: uma runcible spoon é uma colher dupla, com concavidades em ambas as pontas, de tamanhos diferentes. Boswell menciona que ele e Samuel Johnson usavam runcible spoons quando em viagem. Mas parece uma palavra inventada por Lear, e a verdade é que Lear vivia inventando palavras, ou mudando a ortografia delas: "omejutly" no lugar de "immediately", ou "mewtshool" no lugar de "mutual", por exemplo. Num texto em que tentava defender Lear e outros humoristas vitorianos, George Orwell disse que o humorista tem uma função séria: acabar com a dignidade das coisas e das pessoas que se dão muita importância. "Uma torta na cara de um bispo", disse Orwell, "é mais engraçado que uma torta na cara de um pároco". Isso pode bem ser, e Lear nunca esteve interessado na dignidade de ninguém. Mas Orwell vai longe demais reclamando de alguns humoristas ingleses (A.A. Milne, P.G. Wodehouse), porque eles não pareciam levar a sério essa missão de zombar da dignidade dos outros. Bom, mas nem Lear levava isso a sério - se levasse, já não poderíamos dizer que ele não estava interessado na dignidade de ninguém - ele estaria interessado na dignidade dele mesmo. Não, Lear não se levava a sério, nem achava que tinha uma missão - e foi assim que, sem perceber, em guardanapos e pedaços de papel, ele lutou a guerra contra tudo o que é chato e sério no mundo. Quando morreu (já velhinho, alguns meses depois de seu famoso gato Foss), Lear, segundo minhas fontes, foi para o Paraíso. (Os Anjos, como se sabe, adoram a poesia dele, e odeiam a de Byron.) Chegando lá, lhe foi dado tudo o que ele mesmo havia pedido ainda em vida, numa carta. Devo dizer antes que, como todas as pessoas sensatas, Lear adorava a privacidade e detestava barulho. O que ele pediu na carta (e, tenho certeza, recebeu) foi só isto: "Quando eu for para o Céu, se eu for mesmo - e estiver cercado por milhares de bem-educados anjos - direi cortesmente, "Por favor, me deixem só: - não tenho dúvida que vocês são todos encantadores, mas eu não quero conhecê-los; - me deixem ter um parque e uma vista bonita do mar e dos montes, montanha e rio, vale e planície, com uma infinidade de plantas tropicais: - uns poucos querubins bem-comportados pra cozinhar e manter o lugar em ordem - e - depois de eu ter me estabelecido bem - digamos, depois de um ou dois milhões de anos - uma mulher angelical. Mas sobretudo nada de galinhas! Não, nenhuma! Eu até abro mão de ovos e frangos assados para sempre". Por este motivo... Por este motivo, terminada a discussão Propriedade Privada X Socialismo, tendo vencido o lado da Propriedade Privada, não me peçam que aperte a mão do cadáver de Roberto Campos, nem que dance animadamente jogando para cima os ossos pulverizados de Adam Smith. Nessa discussão, eu não estava realmente nem de um lado, nem do outro. Eu estava do lado de Edward Lear. Livros sobre Lear Em português: Sem Cabeça nem Pé, Ed. Ática, 1996 - Tradução de José Paulo Paes Em inglês: sobre Lear, mas não de Lear, recomendo principalmente um livro: Inventing Wonderland- Victorian Childhood as Seen Through the Lives and Fantasies of Lewis Carroll, Edward Lear, J.M. Barrie, Kenneth Grahame, and A.A.Milne, de Jackie Wullschläger. The Free Press, 1995. Sites em inglês sobre Lear Edward Lear Home Page Um poema de Auden sobre Lear Alexandre Soares Silva |
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