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Segunda-feira, 10/6/2002
O homem da paz celestial
Alexandre Ramos

Um bilhão e duzentos e sessenta milhões de pessoas. Vai ter gente assim na China. É verdade que, dos noventa milhões em ação pra cá, a população brasileira quase que dobrou, faltam só uns dez milhõezinhos pra isso, coisa pouca, mas um bilhão, convenhamos, é muita gente. Apenas 600 milhões de chineses assistiram pela TV o jogo contra a Costa Rica, e ainda assim faturaram fácil o título de maior torcida do planeta. Os números são enormes, e as imagens, impressionantes. Mas, número por número, e imagem por imagem, eu ainda fico mais impressionado com o que considero um dos mais importantes eventos históricos do século 20: um homem, um único homem, diante de uma coluna de tanques na Praça da Paz Celestial. Pode ser que o dia 4 de junho de 2002 fique na história da China como a data de sua primeira participação num mundial de futebol, mas aquele 4 de junho de 1989 é um marco na história de toda a humanidade.

Se é verdade (e é) que uma imagem vale mais do que mil palavras, aquela frágil figura armada apenas com uma coragem extraordinária desmente os discursos dos ideólogos de todos os matizes, que insistem em que este ou aquele sistema filosófico ou político-econômico, esta ou aquela pedagogia serão capazes de produzir um mundo melhor. Não. Pessoas melhores produzirão um mundo melhor. Indivíduos. O gesto daquele homem não resultou de assembléias intermináveis que produzem declarações tão óbvias quanto inúteis, nem colocou em risco a vida de ninguém, mas apenas a sua própria.

As instituições existem para o homem, e não o contrário. O próprio princípio da prevalência do interesse social sobre o individual tem como fundamento os direitos e garantias do indivíduo, que são irredutíveis e constituem o ponto de partida de qualquer ordenamento jurídico sério.

A antropologia bíblica aponta com precisão para o alvo: tudo se decide no coração do homem. É lá que as decisões são tomadas, e é lá que se resolve se os "sistemas" - de resto sujeitos a contínua superação por causa de suas limitações intrínsecas - irão ou não funcionar, e de que modo. Não existe receita, nem fôrma, que possam produzir o tal mundo melhor, mas tão somente os abismos da alma humana, que conhecemos pouquíssimo, e de onde podem brotar tanto amor e tanto ódio, às vezes simultaneamente.

A história não é feita somente, talvez nem principalmente, pelos Estados ou pelos "grandes líderes" - que são necessários e têm um papel importante - mas pelas pessoas. Entre as "perguntas de um operário que lê", Bertolt Brecht queria saber quem cozinhava os banquetes das vitórias dos "grandes homens", ou quem mais chorou, juntamente com Felipe de Espanha, quando a (não tão) Invencível Armada naufragou.

É verdade que, além dos citados ideólogos, dos revolucionários e conquistadores de todos os tamanhos e modelos, também nós, pessoas comuns, temos nossa parcela de culpa pelas ditaduras de todo tipo e os horrores que as acompanham. Estudos recentes demonstram que uma boa parte dos envolvidos na realização do Holocausto nazista era constituída por funcionários, profissionais liberais, donas de casa, pessoas como cada um de nós, e que, com a proverbial eficiência germânica, fizeram o que conhecemos. Numa conhecida paráfrase, tão correta quanto irônica, Raymond Aron lembrava que "o marxismo é o ópio dos intelectuais", e com ele todas as doutrinas que pretendam sobrepor absolutamente o que quer que seja ao indivíduo, à exceção, claro, de Deus.

Não tenho a menor dúvida de que um dia reconheceremos, na origem de profundas mudanças no curso da História, a figura singela, corajosa, e de uma extraordinária dignidade - do homem que sozinho deteve os tanques na Praça da Paz Celestial.

Alexandre Ramos
Teresópolis, 10/6/2002

 

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