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Segunda-feira, 17/6/2002 Chutando bexiga de boi Eduardo Carvalho A história do futebol brasileiro - assim como a da arquitetura, da alimentação, da música -, continua mal contada, como se tudo que fosse importante precisasse ser, necessariamente, chato: como se, enfim, as únicas histórias relevantes fossem a econômica e a política. (Pois a influência marxista no ambiente acadêmico brasileiro parece incorrigível, hoje em dia: em vez de produzir História, analisando documentos e reescrevendo o passado, a maioria dos historiadores está mais preocupada em reler Marx & Cia e, à sua simples e ultrapassada luz, interpretar o presente. Afora competentes e marginalizados acadêmicos, que de fato existem, então, a própria História do Brasil vem sendo ultimamente recontada por jornalistas ou gente simplesmente culta e dedicada, sem o ranço que cansa ou a ideologia que envenena.) É sempre admirável, portanto, uma iniciativa como a do historiador José Moraes dos Santos Neto, que lançou recentemente pela editora Cosac & Naify o bonito livro "Visão do jogo - Primórdios do futebol no Brasil". O livro é parte da coleção Zona do Agrião, dedicada a livros sobre o esporte mais popular no Brasil, e pretende, como o nome indica, descrever como, afinal, o futebol chegou ao Brasil, e como ele foi se popularizando a ponto da seleção brasileira ser - e ter sido - talvez nosso mais importante instrumento de representação diplomática. José Morares conta que, já no início da década de 1880, uma variação do futebol, o "bate bolão" - sem traves, times ou campo definido -, já era praticado por padres jesuítas e seus alunos no Colégio São Luís de Itu. O padre José Mantero, ainda antes de ser reitor do colégio, trouxe de uma excursão pela Europa duas bolas com câmara de borracha envolvida por uma capa de couro. As câmaras das ballon anglais, como essas bolas eram chamadas, com o uso e o tempo, desgastaram-se - e foram adequada e criativamente substituídas por bexigas de boi. Em 1894, conta o autor, Luís Yabar, que havia jogado futebol pelas escolas européias, tornou-se o novo reitor do colégio, e introduziu regras no futebol praticado no São Luís basicamente como as que conhecemos hoje: dois times, campo dividido, traves de madeira, etc. Foram esses alunos desse tipo de escola religiosa - Arthur Ravache, Valdemar Junqueira, Vicente de Almeida Sampaio, entre outros -, e especialmente os do São Luís, então, que espalharam o futebol pelo Brasil - de São Paulo a Salvador, de Uberaba a Sorocaba. E não, como reza o senso comum, Charles Miller, que, apesar do nome, nasceu em São Paulo mesmo, filho de um engenheiro escocês, em 1874 - muito pouco antes, repare, do bate-bolão começar a divertir o pessoal em Itu. Que Charles Miller tenha apresentado o futebol ao Brasil é um mito insistente e conveniente, mas um erro histórico que precisa ser desfeito. Miller, depois de uma temporada dedicada aos estudos na Inglaterra - onde se destacava como atacante rápido e driblador habilidoso -, voltou ao Brasil em 1894, acompanhado de um livro de regras do association football inglês, de um par de bolas e um de chuteiras. Nos clubes paulistanos que freqüentava - como o São Paulo Athletic Club, fundado por ingleses - ensinou ao pessoal o futebol que conhecia, e animou-os a montar times competitivos. Os três primeiros foram de altos executivos de empresas inglesas, a São Paulo Railway, a São Paulo Gás Company e o London Bank. A intenção de Miller nunca foi divulgar o futebol pelo Brasil inteiro, nem mesmo pela São Paulo proletária e periférica, que ele não conhecia, mas torná-lo mais praticado e competitivo dentro do próprio grupo social a que pertencia. Ele é, de fato, em grande parte responsável, ainda que não o único, pelo futebol começar a ser praticado fora de escolas religiosas - mas a verdade é que, no Brasil, os primeiros a baterem uma pelada foram mesmo os jesuítas e os seus alunos, chutando bolas improvisadas em campos enlameados. O futebol dentro dos clubes - São Paulo Athletic Club, Associação Atlética Mackenzie, Sport Club International, Clube Atlético Paulistano -, esse incentivado por Miller, jogava entre si, mas não se misturou rapidamente com o que vinha sendo praticado, em bairros operários da cidade, por trabalhadores imigrantes europeus. Havia também alguns times de negros e mulatos, que ganhavam a vida no mercado informal da cidade, igualmente desprezados. Até 1905, os times de elite jogavam nos mesmos campos que os populares, até que, em parceria com a prefeitura, o Clube Atlético Paulistano transformou o Velódromo municipal em um campo particular. E os clubes populares, sem outra opção, mantiveram-se, entre outras regiões, na Mooca, em Cambuci e, principalmente, na várzea do Carmo - e passaram, assim, a ser conhecidos como varzeanos. Em 1901, foi organizada a primeira competição paulista de times de futebol, mas que reuniu apenas os cinco times da elite, desprezando o futebol de qualidade jogado pelos times da várzea. Em 1912, porém, com os times populares cada vez melhores e mais importantes, a Liga acabou aceitando a participação do Ipiranga Futebol Clube. Em um episódio hoje considerado vergonhoso, Miller e sua turma do São Paulo Athletic Club desistem do campeonato, e o Paulistano, também em resposta a essa iniciativa democrática - que agredia a pose pretensiosamente aristocrática dessa elite provinciana -, abandona o grupo. Quando o Sport Club Corinthians, a melhor equipe do futebol da várzea, foi aceita na Liga, então, aí a LPF se rachou definitivamente, e foi fundada, em 1913, a Associação Paulista de Esportes Atléticos, que pretendia perpetuar a tradição do futebol inglês iniciada com Charles Miller. Além de corrigir esse engano repetitivo, que é o de atribuir a Miller o ingresso do futebol no Brasil, José Moraes esclarece as diferenças entre a escola de dribles e a de passes. Quando o futebol, no início do século XIX, era praticado na Inglaterra, as jogadas eram muito simples e individuais. Chutava-se para frente e corria-se atrás da bola, em um esquema como o dos recreios de escolas primárias, em que jogam 25 alunos para cada lado em um campo apertado. Mas os escoceses, no último quarto do mesmo século, lembra o autor, descobriram a eficiência do toque de passes, em que a bola corre mais rápida e mais segura. Só assim foi possível organizar os jogadores em campo de uma forma inteligente, com laterais e atacantes escolhidos e treinados para a função. Claro: o futebol escocês passou a bater o inglês com facilidade - e a fazer piada dele. No Brasil, foi o jornalista Mário Cardim que, atualizado sobre as novas tendências do futebol mundial, já em 1904 defendia a escola escocesa, apesar do modelo trazido por Miller e aderido pelos jogadores, baseado em jogadas pessoais (foi Miller, vale lembrar, que inventou o drible da vaca), só ser repensado por volta da década de 30 - e, convenhamos, ainda hoje não descartado completamente. Foi também Mário Cardim que, em 1914, fundou a Federação Brasileira de Futebol. Em 21 de julho do mesmo ano, a primeira seleção brasileira entrou em campo nas Laranjeiras para jogar contra a equipe profissional inglesa Exeter City. O estádio estava lotado, mas o árbitro também era inglês: Friedenreich, nosso principal craque, perdeu dois dentes, machucou o joelho e saiu de campo todo ensangüentado. Ainda no primeiro tempo, porém, os brasileiros conseguiram marcar dois gols e garantir a vitória nacional. Começamos com o pé direito - mesmo que, sob a condescendência do árbitro inglês, ele tenha quase se torcido. Mas é na detalhada recomposição dos primeiros jogos entre Brasil e Argentina que José Moraes revela uma inegável vocação para historiador, narrando - com o mesmo mérito de quem descobre uma fundamental batalha esquecida - um jogo de futebol decisivo para a formação do estilo brasileiro de se jogar bola. O jogo da Copa Júlio Roca, disputada exclusivamente entre os dois países, foi marcado para o domingo de 20 de setembro de 1914, em Buenos Aires. Mas o navio em que a seleção brasileira viajou, com data de chegada prevista para a véspera, se atrasou, e chegou em Buenos Aires no dia mesmo do jogo. A partida oficial foi adiada, mas foi marcado para o mesmo dia, apesar do cansaço dos jogadores brasileiros, um amistoso entre as duas equipes. Entre uma chuva forte e um campo alagado, a equipe brasileira perdeu de 3 a zero, mas impressionou o público argentino com a habilidade individual dos jogadores e o entrosamento técnico do time. E com razão. A Copa Roca tinha sido marcada para o domingo seguinte, dia 27 de setembro. É impressionante como José Moraes narra minuto por minuto o jogo, em todos os seus movimentos - ataques perigosos, defesas assustadas, passes controlados e, claro, o único gol da partida, do brasileiro Rubens Salles. Foi o primeiro título disputado pelo Brasil, e o primeiro a ser conquistado. Talvez, podem argumentar os argentinos, porque Maradona ainda não estava em campo. É verdade: em uma disputa na área brasileira, Leonardi marcou o que seria o gol de empate argentino com a mão, não tivesse Galup - também argentino - assumido para o árbitro que o gol tinha sido ilegal. E recebeu aplausos de ambas as torcidas. "Não se fazem mais sportsman como antigamente", lamenta o autor. Nem torcedores. Mas as bolas, pelo menos, acho que agora são melhores. Eduardo Carvalho |
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