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Terça-feira, 24/4/2001
Norman Mailer, Copacabana e as Badalhocas
Rafael Lima

No livro Canibais e Cristãos, tem um artigo de Norman Mailer sobre a arquitetura moderna, criticando a nudez dos arranha céus que estavam construindo na Ilha de Manhattan. O texto data do começo da década de 60, e as visões que se tinham do urbanismo no futuro eram as mais apocalípticas possíveis. A própria capa do livro é uma enorme construção feita com Lego.

Tem um filme do Steve Martin, L.A. Story, em que ele passa grande parte do tempo batendo papo com um letreiro luminoso, um daqueles painéis de leds que se combinam entre acesos e apagados para formar frases ou figuras, que nem o painel eletrônico do Maracanã. Acho que é o exemplo mais claro de como se dá a comunicação numa cidade. Não existe espaço (ou tempo), nem representatividade para o papo lado a lado, a conversa telefônica. A comunicação acontece em escala ciclópica: outdoors, telas digitais, letreiros de cinema, logotipos em néon de lojas, relógios colossais, sinos de igreja, um ultra-leve rebocando uma faixa na orla, um dirigível no céu da cidade. Tudo isso está relacionado com o que os arquitetos e urbanistas entendem por "mobiliário urbano".

O mobiliário urbano seria o conjunto de todos os móveis e utensílios que compõe, em conjunto, a paisagem urbana (mesmo que nem sempre tão úteis e nem sempre tão em conjunto assim): latas de lixo, bancos de praça, pontos de ônibus, placas de ruas, postes de luz. Coisas de presença mais sutil e mais intensa do que se pensa, porque, como as árvores, estão sempre ao redor, e estamos sempre à procura delas. Muito do espírito de uma cidade pode ser entendido a partir de seu mobiliário urbano. Os bancos em pontos de ônibus de Los Angeles tem formato de meia-cana, para impedir os mendigos dormirem neles. Em San Francisco os assentos giram em torno de um pino quando não tem ninguém sentado. Londres sempre foi lembrada pelas herméticas cabines de telefone vermelhas. Os "orelhões" do Rio, em Recife tem formato de côco ou berimbau. Não espanta que o prefeito Cesar Maia e o arquiteto Conde tenham recebido tantas críticas quando decidiram remodelar as ruas com o projeto Rio Cidade. Estavam mexendo com algo mais sério do que decoração: as referências urbanas.

Substituir antigos latões de metal por caixas alaranjadas, verdes e azuis para coleta seletiva de lixo não exemplifica apenas uma renovação estética; mais do que isso, explicita claramente a preocupação dos habitantes com lixo, reciclagem, ou a facilidade de coleta que um mero trilho de metal permite.

Espanta, sobremaneira, a atitude - comum em centros urbanos - de roubo de referências públicas. Uma vez li que a CET Rio substitui uma percentagem considerável de cones de sinalização - aqueles listrados em laranja e branco - porque eles são roubados. Me pergunto quem são os sujeitos que surrupiam essas coisas, e para que? Decorar um quarto, ou uma festa, sei lá. Um amigo me conta que conheceu um sujeito que arrancou um telefone público antigo, dos de ficha, pouco antes deles serem substituídos pelos de cartão. Existe esse sentimento meio autofágico de tentar preservar no lar - o privado - a cidade afetiva - o público - por meio de relíquias, ou aquilo que Carlos Leonam chamou de badalhocas.

É impressionante o apego que os cidadãos urbanos demonstram para com os maiores absurdos do meio urbano, agressões estéticas, ecológicas ou visuais. Outdoors espalhados nas margens de vias expressas, tapando a paisagem, são renovados a cada mês, funcionando como uma espécie de jornal para quem passa ali todo dia. Construções estranhas viram referências de localização, como a antena da Paulista, a pirâmide Transamérica ou o obelisco de Ipanema. E no entanto não passam de agressões ao meio urbano, aberrações, por mais que se as empreste valor afetivo.

Ás vezes esse sentimento se institucionaliza. Uma loja em San Francisco vende placas idênticas às que se encontra nas ruas da cidade. Dependendo da intensidade da relação, os próprios cidadãos se preocupam em preservar referências, que vão sendo consumidas pelo predatismo imobiliário, pelos delírios dos governantes, pelas mudanças que o tempo traz. Alguns moradores da Ipanema dos anos 60 guardam em suas casas o néon do Jangadeiros ou as pegadas em cimento da calçada da fama do Antônio's. Tenho certeza que se fosse possível alguém teria levado o bonde da General Osório para casa...

Tudo isso formula 2 ou 3 princípios: primeiro, a difícil tarefa de se separar o que é referência e o que é lixo urbanóide, sob o risco de daqui a pouco a gente se transformar em paródia de Blade Runner, marcando encontro nos escombros 4H, junto do desastre de carros C. Segundo, a atenção com a diversidade e a riqueza arquitetônica, onde reside parte da personalidade da cidade. Caixotes envidraçadas sem parapeitos podem ser extremamente funcionais e até ecologicamente corretos, mas continuam irritantemente inócuas. E a padronização se alterna entre a falta de opções da arquitetura socialista ao "pesadelo com ar condicionado" dos condomínios do Show de Truman. Terceiro, a verdadeira guerrilha que os moradores tem que manter contra quimeras imobiliárias, poluição visual e prostituição turística, eternos inimigos da vizinhança. Nada mais terrível do que aconteceu com Copacabana na década de 50, ou Ipanema dez anos depois. Ou, como resume a placa na entrada do abandonado e mal planejado Berkeley's People's Park: "where we took up a parking lot and put up a paradise".

O meio urbano por si só já é suficientemente neurotizante para que a gente o piore.

Rafael Lima
Rio de Janeiro, 24/4/2001

 

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