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Sexta-feira, 21/6/2002
Grandes Carcamanos da História
Alexandre Soares Silva

Há um lobby italiano no mundo, e no Brasil, que chega a ser quase mais poderoso do que o famoso lobby israelense. Os italianos conseguiram, por exemplo, passar a imagem de nação chic, com aristocratas refinados e mulheres lindas. Nos EUA, por exemplo – se um italiano é de classe baixa, é mostrado nos filmes como sendo um tanto grosseiro, mas cheio de vida; se é de classe alta, é ultra-aristocrático. Não é por acaso que Hannibal Lecter (a mais inteligente vítima do lobby italiano) foi morar em Florença. Outra evidência do bom marketing italiano no mundo: num episódio dos Simpsons, um supervilão no comando de uma arma gigantesca pergunta a Homer se ele prefere ver a Itália ou a França destruída. Homer responde França. O supervilão ri e diz: “Nunca ninguém escolhe a Itália”.

No Brasil, o lobby italiano se contrapõe principalmente ao lobby português. Pode reparar: ninguém diz mais piada de português do que descendentes de italianos; acho mesmo que quem inventou a tradição devia ser italiano, com raiva da presença portuguesa aqui. E os brasileiros, que são portugueses que ficaram, acham graça e dizem que é verdade.

Acho que o sucesso do lobby italiano no Brasil se deve ao fato de que os brasileiros querem acreditar nos italianos. Brasileiros são como uma criança que se envergonha um pouco dos pais e imagina que é adotado, e seu pai de verdade é (digamos) um corredor de Fórmula Um. E assim os brasileiros ficam tentando achar que os italianos são os construtores do país, não os portugueses; e com novela atrás de novela tentam reforçar esse mito. O motivo do desprezo por Portugal é óbvio: era Portugal que cobrava impostos. Se Veneza tivesse cobrado impostos dos brasileiros, os brasileiros odiariam os italianos; mas os italianos nunca administraram o Brasil, nem cobraram impostos.

Durante o final do século vinte, brasileiros com sobrenomes italianos foram ocupando cargos em jornais, canais de tevê e agências de publicidade, como o italiano Gramsci aconselhava aos intelectuais comunistas. Mas ao invés de fazerem a propaganda da Revolução Comunista, fizeram apenas a propaganda dos próprios pais - colocando música italiana (a horrenda música pop italiana) em comerciais de sabonete, para mostrar subliminarmente que Itália é delicada, refinada, chic. Imagine uma propaganda de sabonete com música de Amália Rodrigues no fundo. Não dá.

Mas vamos examinar esses pontos de perto.

1)Mulheres bonitas. Os brasileiros têm a absoluta certeza de que não existem portuguesas bonitas – que todas as suas tataravós eram bigodudas, e que se as suas próprias mães não se parecem com Nietzsche é porque, em algum ponto, entrou sangue africano. Essa combinação, se fosse real, só teria dado, é claro, um Nietzsche neguinho com seios. (Não, cinquenta milhões de Nietzsches neguinhos com seios, requebrando pelo calçadão de Ipanema). Ninguém vê, por exemplo, que uma das mulheres mais bonitas do mundo é portuguesa de Amadora: Teresa Salgueiro, a vocalista do grupo Madredeus. Digo bonita no sentido completo do termo: bonita de rosto, de corpo, de voz, de espírito. E parece que ninguém no Brasil vê a RAI, que está cheia de peruas italianas com aquele cabelo louro-milho de mulher de político baiano. Falando alto, defendendo maridos cartolas de acusações de corrupção.



Ou pensem no caso da atriz Maria Fernanda Cândido. Em duas novelas ela fez papel de italiana: numa se chamava Paola, e nesta que está começando agora, Esperança, se chama Nina. Na vida real, ela tem (acho) só uma avó italiana, do Vêneto; sou capaz de apostar que o resto da família é de brasileiros, descendentes de portugueses; e no entanto, cada vez que ela aparece na tela, as pessoas pensam: “Como são bonitas as mulheres italianas!”. Ora, uma avó minha era espanhola, a outra portuguesa; e ninguém me cita como exemplo da beleza do homem ibérico. Não entendo...

Se me citarem os sagrados nomes de Sophia Loren, Silvana Mangano, Claudia Cardinale, ou Ornella Muti, responderei com os não menos sagrados nomes de Catherine Deneuve, Brigitte Bardot, Fanny Ardant, Isabelle Adjani e Juliette Binoche. Mulher bonita há em qualquer parte do globo - meu Deus, até mesmo Gales, que é famosamente uma terra de gente feia, produziu Catherine Zeta-Jones.

2)Arte, então. Vamos deixar o Império Romano de lado (é outra coisa) e nos concentrar na Itália mesmo. Pintura: as qualidades de Giotto, Mantegna, Carpaccio (sim, é um pintor), Ticiano, Veronese, Rafael etc são óbvias demais, e eu não vou negá-las só para ganhar a discussão. Fiquei convencido quando Gustavo Corção escreveu, no seu livro “Dois Amores, Duas Cidades”, que o Renascimento foi mais um passo pra trás do que um passo pra frente- em termos filosóficos, espirituais, morais. Mas no que diz respeito à pintura sei que isso não é verdade; nunca, me parece, a humanidade pintou tão bem quanto durante o Renascimento Carcamano. Mas esses são pintores de 1300, 1400 e 1500. Costuma-se dizer que Portugal vive de glórias passadas - mas e a Itália? À medida que os séculos foram passando, os grandes pintores italianos foram sumindo. O século XVIII ainda produziu Tiepolo, Guardi e Canaletto - enquanto a França tinha Watteau, Boucher, Fragonard, e o grande Chardin. Mas quando chegamos no século XIX o encolhimento do talento italiano para a pintura chega a ser humilhante: enquanto a Espanha produz Goya, a Itália tenta responder com mediocridades como Vincenzo Migliaro. Não adianta nem mencionar o que estava acontecendo na França, enquanto Morelli pintava sua obra-prima Il Conte di Lara ; Gauguin, Manet, Monet, Renoir, Pisarro, Corot, Toulouse Lautrec, Cézanne, Moreau, Redon, etc. Na verdade, para que a França fosse reduzida à estatura da Itália no século XIX, temos que imaginar todos esses pintores franceses morrendo no berço – um segundo massacre de Herodes, do qual só teria sobrevivido o bebê (e futuro pintor interessantinho) Puvis de Chavannes. E mesmo assim, Puvis de Chavannes, sozinho, é bem melhor do que qualquer pintor italiano do século XIX.

O século vinte é um pouquinho melhor para a pintura italiana - mas só um pouquinho. A Itália produziu grandes nomes como Modigliani e Morandi; mas quase estragou tudo produzindo Giorgio de Chirico. Contraponha a isso os grandes pintores franceses do século XX. Pode ser mesquinho e excluir Picasso e Salvador Dali, que ao fim e ao cabo eram tão franceses quanto Van Gogh; ainda restam Vlaminck, Derain, Marquet, Braque, Léger, Utrillo, Picabia, Bonnard, Dufy, Dubuffet e Juan Gris; nabis, fauves , surrealistas, abstratos. Na verdade, Matisse sozinho já bastaria.

3)Literatura: A Itália conheceu cedo a grandeza literária , na prosa e na poesia – Dante, Petrarca e Bocaccio surgiram num intervalo de 50 anos - e depois emudeceu. Ah, houve Ariosto, e Torquato Tasso; mas onze anos depois da morte de Tasso (1595), Corneille nasceu na França; e logo depois Molière e Racine - e cessa tudo quanto a antiga musa canta. De cabeça, não consigo me lembrar de nenhum poeta italiano do século dezoito; a enciclopédia me lembra que há Alfieri (1749-1803), mas depois de examinar alguns poemas online chego à conclusão de que ele não vale metade de um André de Chénier (1762-1794). No século XIX há pelo menos um poeta, Leopardi, e um romancista, Manzoni; mas sinceramente o que é isso perto do que a França produziu? O que pode Leopardi, sozinho, contra Hugo, Baudelaire e Gautier? Não, vamos parar de comparar a Itália com a França; comparemos com Portugal, e até mesmo com o Brasil. Manzoni é interessante, mas não chega aos pés de Eça de Queiroz - ou de Machado de Assis. E no século vinte, quando a Itália produziu nomes interessantes como os dois Italos (Svevo e Calvino), é preciso admitir que, por melhor que seja Eugenio Montale, não chega às canelas de Fernando Pessoa; nem ao queixo de Carlos Drummond de Andrade.

4)Música: Eu sei, vocês estão pensando em Verdi, Rossini e Puccini. Confesso que às vezes não resisto e canto, no chuveiro, Parigi o cara, noi lasceremo. E queria dizer, para provocar um pouco mais, que prefiro Wagner - mas isso nem sempre é verdade. Entretanto acho que é significativo o fato de que a maior ópera composta em italiano tenha sido feita por um austríaco (Don Giovanni, de Mozart). Aliás, como se sabe, Mozart tinha péssima opinião dos italianos; numa carta ao pai diz sobre o músico Clementi que ele “ é um Ciarlatano, como todos os italianos” (carta a Leopold Mozart, datada de 7 de Junho de 1783).

Quanto à música atual, mantenho que nada é mais horrível do que o pop italiano; nem mesmo rap, pagode, bunda music ou navel music; não, nem mesmo muzak; nem mesmo Paul Mauriat. No Brasil, graças ao lobby italiano, donos de cartórios e postos de gasolina, em seus carros sempre caros demais, gostam de ouvir Eros Ramazzotti ou Laura Pausini ou Domenico Modugno; suas mulheres dizem para as amigas: “Olhando pra ele ninguém acredita, mas o Rodolfo é tão sensível!”. Por algum motivo, anfitriões em São Paulo recebem seus convidados ouvindo isso – da mesma forma que alguém que não entendesse de vinhos poderia achar très chic servir o Vinho do Palmeiras num jantar. Mas compare a relativa breguice de uma música pop francesa (Que C’est Triste Venise, por exemplo) com a breguice de Sapore di Sale. Não, pior; compare uma música realmente brega como Je T’Aime com a breguice quase radioativa de Champagne ( Per Brindare un Incontro...) . Cresci ouvindo a voz ardida de Rita Pavone cantando Datemi un Martelo, da qual ainda gosto muito; mas mesmo assim tenho que preferir o pop francês. Amore, scusami!

Testemunhos: Berlusconi, cinema dublado e Pepino di Capri são provas suficientes de falta de civilidade; mas mesmo assim chamo como testemunhas, para encerrar o caso, dois experts em sofisticação: Edgar Allan Poe e Tom Ripley.

1) Edgar Allan Poe (1809-1849) – No seu conto de vingança O Barril de Amontillado , o escritor americano escreveu: “Ele se orgulhava do seu conhecimento de vinhos. Poucos italianos têm o verdadeiro espírito de connoisseur. Na maioria das vezes seu entusiasmo se adapta àquilo que a ocasião e a oportunidade exigem, tendo em vista enganar milionários ingleses e austríacos. Em pintura e pedras preciosas, Fortunato, como todos os seus compatriotas, era um impostor..”. ( “He prided himself on his connoisseurship in wine. Few Italians have the true virtuoso spirit. For the most part their enthusiasm is adopted to suit the time and opportunity--to practise imposture upon the British and Austrian millionaires. In painting and gemmary, Fortunato, like his countrymen, was a quack...” )

2) Tom Ripley – Ninguém tem mais savoir-vivre (e savoir-tuer) do que esse personagem da escritora americana Patricia Highsmith (1921-1995). Se não fossem os assassinatos e as falsificações, juro, queria ser como ele - que casou com uma francesa linda e rica, e vive numa cidadezinha francesa chamada Villeperce, passando seus dias fazendo jardinagem, lendo, pintando, tendo aulas de cravo, e à noite recebendo amigos de Paris. Pois bem: em O Talentoso Mr. Ripley (o livro, não o filme), Ripley vai para a Europa pela primeira vez, tentar convencer um pintor chamado Dickie a sair da Itália e voltar para os EUA. Ripley se apaixona pela Itália e logo está falando italiano melhor do que Dickie; mas mesmo inexperiente, aos vinte anos, Ripley sente intuitivamente que a França deve ser um pouquinho menos grosseira, mais discreta, “mais chic”. Dickie não quer ir; é um boçal e um pintor sem talento. Assim que Ripley o mata (oh, por outro motivo: dinheiro), a primeira coisa que faz é ir para Paris.

Resumo: Tenho agora algumas linhas para encerrar o caso; então vou deixar ao menos uma coisa clara. Meu propósito não é dizer que a Itália é uma porcaria; a Itália não é uma porcaria. Nenhuma nação que tenha produzido Rafael e Totò pode ser uma porcaria.

Mas o lobby italiano, como todos os lobbies, é. Esse lobby vende duas imagens dos italianos: se um italiano é rico, é aristocrático – interessado em vinhos e arte e belas mulheres; se é pobre, por mais ignorantão que seja, é sempre admirável. No Brasil, onde cultura não causa muita admiração, o lobby italiano escolheu sabiamente popularizar o estereótipo do italiano pobre, mas “simples, batalhador, cheio de vida e paixão”, etc etc. Esta novela que está começando é um exemplo disso – a própria propaganda da Globo se referia aos italianos, do modo asquerosamente sentimental que a Globo sempre tem, como “essa gente sofrida e batalhadora”. E ah, sim – sensual – reza o estereótipo que os italianos são sempre sensuais, sejam lá de que classe forem. Esses estereótipos podem bem ofender alguns italianos de bom senso, mas mesmo assim beneficiam o povo italiano e foram criados pelo lobby italiano. Os principais propagadores desses estereótipos têm sido a Globo, um certo romance de E.M.Forster, as propagandas de carro e duas dezenas de filmes românticos em que americaninhas lindinhas se apaixonam por italianos de barba por fazer.

Última Prova

O teólogo quinhentista Heinrich Bünting fez um mapa famoso (abaixo) em que a Europa é uma mulher; a Espanha é a cabeça; Portugal é a coroa; mas a Itália é só um braço...


Alexandre Soares Silva
São Paulo, 21/6/2002

 

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