|
Terça-feira, 9/7/2002 Um olhar francês sobre os cães Bruno Garschagen Roger Grenier é um escritor com senso de humor aguçado. Difícil definir de forma mais apropriada um intelectual francês que escreve um elogio aberto aos cães, ainda que bem-humorado. Da literatura à filosofia com incursões na psicanálise, Grenier pinça nas obras de grandes escritores e pensadores referências ao cachorros, dos fatos curiosos aos insólitos, no livro "Da dificuldade de ser cão", o primeiro a ser traduzido no Brasil. Dividindo por vezes o papel de protagonista com seu cão Ulisses, Grenier percorre as ruas de Paris narrando o comportamento do animal com as pessoas e a reação delas com ele. Nesse ambiente bastante comum, o escritor abre o flanco para buscar histórias com cães nas obras de Jean-Paul Sartre, Maurice Maeterlink, Rainer Maria Rilke, Lou Andreas-Salomé, Gertrude Stein, Virginia Woolf, Baudelaire, Flaubert, Emmanuel Kant, entre outros não menos coroados. Investido na pele do que podemos chamar de intelectual-au-au, Grenier tempera as citações com um humor refinado e, por vezes, cortante. Parece escrever com uma caneta na mão e o bisturi na outra. "Ela estava com noventa e cinco anos. Que otimismo! Talvez ela estivesse certa, já que viveu até os cento e sete anos, alguns dizem que cento e dez. Restava-lhe, portanto, mais ou menos a duração de uma existência canina", comenta, após receber o telefonema de uma senhora idosa que gostaria de comprar outro cão para substituir o que morreu. Até quando escreve sério o escritor francês soa gozado. Talvez seja o tema incomum ou a forma como conseguiu reunir uma considerável quantidade de informações sobre o animal que carrega o estigma de ser o melhor amigo do homem - aliás, uma grande covardia com os bichinhos. O estilo de Grenier, conselheiro literário da editora francesa Gallimard e autor de dezenas de livro de ficção e crítica literária, é elegante. São 43 textos curtos com títulos sugestivos, do tipo "O mundo dos cheiros" (sobre a importância do olfato na vida canina), "A namorada do cachorro de Goering" (sobre a fracassada tentativa do escritor em "casar" sua cadela Sarigue com um pastor que fizera parte dos cães do segundo homem do Terceiro Reich), "Misantropo" (sobre as opiniões de Schopenhauer, Baudelaire e Thomas Bernhard a respeito dos cães). Nos textos, dificilmente o escritor dá voltas. Dirige seu foco de observação diretamente no inusitado ou lamentável e às vezes deixa ao leitor a incumbência da ironia. Esse artifício da moderna literatura impede que Grenier caia no ridículo se fosse pretender densidade num tema como esse. Em "Inimigos", que trata do treinamento de cachorros para batalha, o escritor finaliza assim o texto: "Um decreto da Suprema Corte, em 1992, definiu cão perigoso como aquele que se joga espontaneamente sobre as pessoas para mordê-las". Era preciso dizer mais? O livro - lançado na França em 1998 e nos EUA em 2000, onde obteve críticas favoráveis - está cheio de toques de um humor sofisticado, mas está longe de ser uma obra-prima. Em "O passeio na rua du Bac", hilária a história da mendiga que ia algumas vezes à editora Gallimard para dizer que lhe tinham roubado um manuscrito. Certa vez, pediu para falar com Gaston Gallimard, o falecido fundador da editora francesa. À resposta da morte pela funcionária, a mulher afirmou categoricamente que aquilo não era verdade. "Eu o vi no enterro de Jean-Paul Sartre (vivo na época)". Talvez o que Grenier mais goste seja expor o ridículo do comportamento humano com os cães. É assim, por exemplo, quando nos conta que um ministro da Cultura proibiu o cão do funcionário do cemitério de Sète de indicar aos turistas a posição de túmulos de personalidade francesas. Quando algum turista visitava o lugar em busca do túmulo de Paul Valéry, o funcionário municipal acordava seu animal e berrava: "Valéry", ao que o cão não vacilava ao levar o visitante ao túmulo do poeta. Nada mais poético. Há textos em que o autor francês sugere como os cães serviram de inspiração a escritores diversos. Rainer Maria Rilke escreveu o poema "O Cão" e voltou ao tema em "Os cadernos de Malte Laurids Brigge" e no curto "Um encontro"; Gertrude Stein enumerou os cachorros e os maridos da protagonista de seu romance "Ida"; Chesterton faz o cão de "O albergue voador" sentir piedade do pouco olfato dos humanos; Virginia Woolf, em seu autobiográfico "Flush", coloca o cocker spaniel que dá nome ao livro como a personagem principal da obra; Scott Fitzgerald alçou um cão ao papel de herói na novela "A manhã de Shaggy". "Da dificuldade de ser cão" desfaz qualquer argumento contrário ao fato do animal ter uma importância até então ignorada na literatura mundial. E se o próprio Grenier confessa que os franceses se dirigem a seus animais como se pessoas fossem, então tratou de relegá-las a segundo plano, mirando os holofotes sobre os cães, construindo uma sátira incursão ao universo canino pela história do pensamento e das artes mundiais. Pinceladas Roger Grenier é autor de dezenas de livros de ficção e crítica literária. Publicou novelas, estórias curtas e ensaios literários. Durante décadas tem se mantido como a figura central da literatura francesa. Recebeu inúmeros prêmios, incluindo O Grande Prêmio de Literatura da Academia Francesa pelo conjunto da obra. Além de escritor, Grenier é editor e conselheiro literário da editora Gallimard em Paris. Livros do autor Avant une guerre (1971), Ciné roman (1972), Le Palais d'Hiver (1973), Un air de famille (1979), Les Embuscades (1980), La Follia (1980), La fiancée de Fragonard (1982), Le silence (1984), Il te faudra quitter Florence (1985), Le Pierrot noir (1986), Albert Camus, soleil et ombre : une biographie intellectuelle (1987), La mare d'Auteuil (1988), Pascal Pia, ou, Le droit au néant (1989), Partita (1991), Regardez la neige qui tombe: impressions de Tchâekhov (1992), Iscan (1992), La marche turque (1993), Trois heures du matin, Scott Fitzgerald (1995), Quelqu'un de ce temps-là (1997), Les larmes d'Ulysse (1998), Le veilleur (2000), Fidèle au poste (2001). Para ir além Bruno Garschagen |
|
|