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Terça-feira, 9/7/2002 O chá de Lygia Evandro Ferreira Referindo-se aos contos de Lygia Fagundes Telles, José Paulo Paes afirmou que seu "interesse persiste mesmo depois de terminada a leitura, quando, viva ainda na memória a ressonância das situações emblemáticas representadas no livro, ficamos a maturar no esquivo significado das figurações que enriquecem a semântica do dito com as instigações do não-dito ou do quase-dito". Essa sutileza e requinte literários é inconstante nas páginas de Durante aquele estranho chá, livro que reúne escritos dispersos da autora. O trabalho de edição é esteticamente impecável, talvez até excessivamente bem cuidado. Além disso, como tantos livros no Brasil de hoje, a qualidade do papel e do trabalho de editoração é maior que o necessário. O verdadeiro defeito, entretanto, é mesmo a inconstância dos escritos, tanto na forma como no conteúdo. Mas não exageremos a intensidade desse defeito. Digamos que o livro poderia ter 150 páginas ao invés de 203. Um trabalho de edição mais rigoroso eliminaria uns tantos escritos de menor interesse e daria ao leitor uma amostra mais fidedigna da autora. No texto que dá nome ao livro, Lygia se encontra com Mário de Andrade. Suas lembranças do episódio são, como sempre, intimistas. São muito mais impressões do que descrições. Como ela mesmo diz, "lá sei se estou sendo exata com os fatos, mas as emocões, essas sim, são as mesmas que passo a narrar em seguida". Ler os textos de Lygia é como pensar. É um processo veloz, leve e permeado de interferências que quebram (sem quebrar) a linearidade: "[Mario de Andrade] queixou-se ainda dessa incrível timidez que, como eu, procurava disfarçar mas tão desastradamente que ficava parecido com certa personagem de um certo conto que ia quebrando os potes e depois não sabia onde esconder os cacos - nos bolsos?...". Pensar, falar e escrever se confundem em uma graciosa manipulação da língua. Regras gramaticais? Lygia tem suas próprias, mas nenhuma delas nos ofende os ouvidos. Aliás, sua prosa é para ser lida, e não pronunciada em voz alta. Talvez por ser tão intimista, torna-se meio simplória se pronunciada. Esse jeito de escrever "de dentro" (como bem observou José Paulo Paes) transforma, ou melhor, filtra os fatos. Do outro lado do filtro, sobra "apenas" o que foi visto pela memória. O passarinho que entra pela janela - no texto Onde estiveste de noite? - provoca uma incrível profusão de reações e sentimentos: "acordei em meio do grito, gritei? Com os olhos ainda flutuando na vaga zona do sono, levantei a cabeça do travesseiro e quis saber onde estava. E que asas eram aquelas, meu Deus?! Essas asas que se debateram assim tão próximas que meu grito foi num tom de pergunta, Quem é?...". Sutilmente é que se descreve - na primeira frase - aquela sensação que temos quando gritamos em um sonho e acordamos sem saber se o grito foi real. E diante da revolução de emoções que se processa na pessoa, descobre-se que o passarinho não é apenas um animal que entrou pela janela. É também, de uma certa maneira, aquele conjunto de imagens e pensamentos que acontece dentro da mente de quem o viu. Como diria Aristóteles, o passarinho é uma substância carregada de acidentes, um ser que, por onde passa, provoca uma série de consequências no mundo. Ponto ainda mais alto do livro são suas reflexões sobre Machado de Assis. Lygia explica de maneira simples e sucinta a maneira como o autor de Dom Camsurro construía sua visão do mundo, irônica e sem misericórdia. Destrincha as armadilhas de seus personagens, suas duvidosas lembranças e descrições dos fatos passados, o tom sóbrio da escrita, "sem ênfase". A comparação com Carlos Drummond de Andrade enriquece ainda mais a reflexão: "'As coisas. Que tristes são as coisas consideradas sem ênfase', escreveu o poeta Drummond. Sem dúvida, é evidente que o nosso escritor [Machado] devia concordar com isso: sem ênfase a vida piora. A solução foi simples, transferir a ênfase para os loucos, ah, como ele soube lidar com os loucos neste planeta enlouquecido". E resume tudo no encontro aparentemente impossível dos dois autores (só aparentemente): "'Tu não me enganas, mundo, e eu não te engano a ti', escreveu Drummond. Neste verso, a epígrafe ideal para a obra de ambos varando a eternidade a eternidade a eternidade". A escrita de Lygia, contudo, pode facilmente se tornar melosa. E o excesso de lirismo que vira condescendência - como se pode notar, por exemplo, no texto Jorge Amado - é a armadilha de toda visão muito sentimental do mundo. Assim, sua admiração pelo autor é tão grande como é ingênua a maneira como enxerga uma beleza pura no modo como ele supostamente conciliou comunismo e tradicionalismo. Os escritores latino-americanos não raro caem nas armadilhas da ideologia e demonstram uma ingenuidade política que, arriscaria eu, bem pode ser fruto de um excesso de intimismo que os impede de ir além da psicologia em suas análises mais pretensiosas do mundo. Como bem observou Martim Vasques, "como uma criatura bifronte, o escritor latino se vê dilacerado entre suas obras ambiciosas, impecavelmente realizadas em termos artísticos, e suas opiniões políticas recheadas de uma ingenuidade perigosa, pois defende os governos socialistas totalitários como se fossem a única solução para o planeta". Eu não seria tão cruel com Lygia Fagundes Telles, mas sua visão lírica de Jorge Amado mostra como são frágeis as idéias políticas da autora quando comparadas à sensibilidade e delicadeza agudas de sua literatura. Na verdade, pensar que comunismo (e outras formas de progressismo) e tradicionalismo são conciliáveis é o erro mais antigo de todas as burguesias que foram dizimadas em regimes totalitários até hoje, totalizando uma cifra que já ultrapassa os 100 milhões de mortos. Mas as idéias políticas, mesmo em uma coletânea de depoimentos como essa, não desempenham um papel senão secundário. E, quando se trata de escritores, o melhor que temos a fazer é desfrutar de suas belas análises da natureza humana e desconfiar de todo juízo sócio-político mais direto. Avançando - e recuando - nas páginas, encontramos a alegre escapada de Lygia com sua amiga Clarice Lispector. Convidadas a um entendiante seminário de literatura, na Colômbia, proferiram algumas palavras e simplesmente sumiram do hotel e só voltaram quando o evento estava acabando. Comovente é, ainda, seu tributo ao poeta Drummond, "professor" que marcou sua vida. E em Então, adeus! a autora parte mais uma vez da morte de alguém, aqui Monteiro Lobato, para rememorar seus encontros com essa pessoa. Lygia faz o mesmo com Clarice Lispector e Mário de Andrade, mortes que a fazem reviver encontros. Vários outros textos retratam as impressões e vivências de Lygia, e o leitor não se arrependerá se for conferir. Talvez seja um pouco ambiciosa a pretensão anunciada na apresentação do livro: seduzir o leitor para que ele saia em busca dos romances e contos da autora. Funcionará, talvez, de modo inverso, se o leitor for capaz de perceber que Lygia Fagundes Telles é bem mais do que estas páginas mostram. Sua literatura está em alguns textos, mas não em outros. Em alguns é grandiosa, em outros cede a um lirismo quase piegas de crônica jornalística. Vista de outro modo, essa "oscilação" dos textos de Durante aquele estranho chá pode servir como um aviso de que o escritor não é um sábio, mas apenas uma pessoa sensível que sabe nos mostrar como somos. Cabe a nós pensar em como devemos ser, em como podemos ser. E no fim das contas a escritora sabe disso e podemos ver seus depoimentos como um convite para esse estranho chá organizado pelo editor Suênio Campos, em que ela escreve e nós sorrimos, choramos e julgamos: "Recorrendo ao estilo romântico, convido agora o leitor a descansar na mão direita a fronte pensativa e refletir. E julgar. Vamos, leitor, o vosso julgamento será definitivo". Para ir além Evandro Ferreira |
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