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Segunda-feira, 8/7/2002
Reminiscências de um campeão
Eduardo Carvalho

O assunto parece estar esgotado. Mas, me desculpem, eu não resisti. Durante os quarenta dias de Copa, dificilmente consegui pensar em outra coisa. Deixei, então, minha resenha de Como ser legal, o novo livro de Nick Hornby, pela metade: e resolvi digitar algumas das minhas impressões sobre a Copa. Se até o Pedro Bial pode, eu também posso.

O Homem Gelatina

Galvão Bueno é insistentemente criticado, mas não adianta: sua posição como comandante do coro brasileiro é sagrada. É inútil resmungar. A Globo jamais o tiraria de lá por um motivo muito simples: o povo reclama, mas gosta.

Galvão fala uma quantidade de bobagens incrível. Mas o problema é que, se você desligar o som da tevê para evitá-lo, vai precisar agüentar outros babacas na sala fazendo comentários ainda mais estúpidos do que os dele. Todo mundo reclama do narrador da Globo - mas dificilmente alguem se comporta de maneira diferente da dele. Galvão representa exatamente aquilo que, em um jogo de Copa do Mundo, quase todo brasileiro quer ser: o sujeito arrogante que impõe sua opinião, por mais absurda que seja, ao resto do país inteiro.

A única diferença, então, entre o torcedor comum e Galvão é que o torcedor tem menos audiência. Se pudesse, o torcedor também estaria lá. Seu sonho é contaminar o país inteiro com as babaquices que fala entre os amigos. Mas ninguém consegue exercer essa função com tanta competência como Galvão Bueno - que, com estudada intimidade, chama o Brasil inteiro de seu amigo.

É verdade que ele consegue controlar o timbre de sua voz, alternando rapidamente entre o entusiasmo e a preocupação, com uma facilidade impressionante, na velocidade que o futebol exige. Mas eu desconfio que esta habilidade seja menos resultado de um treinamento para voz do que um reflexo de sua personalidade. Sua sensibilidade é forçada; suas emoções são controladas; sua empolgação é falsa. Galvão Bueno deve ter um espírito de gelatina - exatamente como sua profissão exige.

A profissão, não: os torcedores. Galvão - ou um substituto - poderia narrar de forma mais sóbria e direta, como devem ser narrados os jogos pela televisão. Mas o torcedor inconveniente precisa se identificar com o narrador, e reclamar dele pelos mesmos defeitos que possui - pensando, com a mesma segurança de Galvão, que só ele entende o que está acontecendo em campo. O espírito de Galvão pode ser de gelatina; mas o torcedor que, disfarçado de vítima, nos obriga a agüentá-lo é - mesmo que não seja palmeirense - um espírito de porco.

O Jogador Porcelana

Quando exigiu que seus jogadores sejam todos espada, o técnico da seleção mexicana, Javier Aguirre, deveria ser melhor compreendido - ou, se fui eu que não entendi direito, mais esclarecido.

Não importa qual seja a opção sexual do praticante: futebol é jogo de homem. Seja ele mulher ou invertido. Exige contato físico pesado, e isso não é coisa para bonecas de porcelana como, por exemplo, David Beckham.

Beckham não cai apenas porque é malandro. Cai principalmente porque é fresco. Esse tipo de atitude é tão reprovável quanto a do jogador cavalo. E deveria ser punida igualmente. Futebol, como boxe, não é esporte para bailarinas.

Se Ronaldo foi, nesta Copa, um exemplo como jogador e personalidade, o estilo de Beckham representa - com seus tombinhos e seu topete - o anti-jogo e a vulgaridade. A diferença entre o corte de cabelo dos dois, aliás, diz quase tudo: Ronaldo usou um corte inédito e engraçado; Beckham, como orgulhoso marido de uma Spice Girl, penteia seu cabelo como se fosse integrante da versão masculina da ex-banda da sua mulher. Se fosse mexicano, Beckham correria o risco de não participar da Copa. Nem sua crista artificial engana: David Beckham tem a mesma virilidade de um frango depenado.

Na lata

O fato de Pedro Bial apresentar um programa como o Big Brother não significa, necessariamente, que sua leitura de Guimarães Rosa esteja comprometida. Mas, que dá pra desconfiar, ah, isso dá.

Dava. Porque agora, depois da oportunidade que tivemos para acompanhar suas crônicas narradas na televisão, temos certeza. Pedro Bial não escreve como um admirador de Guimarães - escreve como um apresentador do Big Brother. Se ele joga para os dois lados, então, é em outro sentido - sua versatilidade parece não ultrapassar os limites impostos palas paredes do seu quarto.

E nem adianta ele tentar disfarçar, escrevendo poeminhas e fazendo referências manjadas a Nelson Rodrigues, como a de que, no domingo em que fomos pentacampeões, o povo brasileiro superou, por alguns instantes, seu complexo de vira-lata. Não é verdade. É evidente que ele - o povo - tenha preferido, em vez de se desgastar virando latas, assumir o orgulho de viver dentro de uma.

Eduardo Carvalho
São Paulo, 8/7/2002

 

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