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Terça-feira, 23/7/2002 O pensamento biônico Evandro Ferreira Durante meus anos de faculdade, muitas vezes me deparei com a crítica a um tal de "pensamento único". Como o meu curso era o de Comunicação Social, a expressão não se fazia seguir da palavra "neoliberal", habitual nos cursos mais "preparados" (no sentido carioca do termo). Isso se dá, penso eu, pelo fato de que o referido curso ainda tem de prestar mínimas contas ao mercado, ao estudo do que se costuma chamar de marketing e, por último e não menos importante, à realidade mesma. Assim, a expressão completa eu transcrevo a seguir, a saber, pensamento único neoliberal. Assim ela é e assim aparece em trecho de artigo do Grande Betto (Estado de S. Paulo, 10/07/2002): "Nestes tempos de aridez na vida intelectual brasileira, cujas produções são guardadas a sete chaves nos cofres da academia, exceto as apologias ao pensamento único neoliberal...". O trecho me fez lembrar os outrora famosos senadores biônicos, que se elegiam por vias, digamos assim, "alternativas", e não pelas vias regulares e democráticas. A palavra biônico era então usada com um sentido meio vago, mas que se aproximava de "fabricado artificialmente". A biônica, segundo o dicionário Aurélio, é "o estudo das funções, características e fenômenos observados nos seres vivos, a fim de aplicar tais conhecimentos na idealização de novas técnicas e construção de novos aparelhos e máquinas, em especial no campo da eletrônica". Doravante me explico. Entre as ditas "funções, características e fenômenos observados nos seres vivos", está o pensamento, a produção de conhecimento. E o pensamento é propriamente o que estuda o Grande Betto em suas colunas no Estadão e em outros jornais. Contudo, tenho sérias razões para desconfiar de que esse pensamento que ele estuda foi fabricado (olha a palavrinha mágica!) por ele mesmo e por seus colegas latino-americanos apologistas da teologia da libertação, misto de socialismo e religião católica que tem transformado nossos padres em pseudo-sociólogos militantes. Através de um método frankensteiniano, o Grande Betto, possivelmente, tomou uns tantos princípios de marketing recolhidos naqueles livros vulgares que se vendem às pencas nas livrarias (juntamente com os de auto-ajuda), acrescentou mais uns pedaços de economês FMista e pronto, estava pronta a sua aberração. No processo, talvez tenha recolhido traços de Friedman e Hayek, tomando-os como expressões máximas do pensamento neoliberal. Eu sempre tive a boa-vontade de tentar descobrir o que alguém estava querendo dizer quando falava algo que não fazia sentido, como nas redações de vestibular, ou quando se referia a uma realidade que simplesmente não existia. E foi por isso que recorri a essa tese: o senhor Betto - e tantos outros - criaram um pensamento único neoliberal biônico e depois passaram a se referir a ele como se existisse. Digo isso porque simplesmente não consigo enxergar a realidade descrita no trecho citado no segundo parágrafo. Quando eu entro em uma livraria neste país, o que vejo são dezenas, centenas de livros de acadêmicos que criticam o neoliberalismo. Mas não consigo encontrar sequer os livros de Friedman e Hayek, sempre raros e em edições mal traduzidas e feias. Isso, para não falar de Ludwig von Mises, Murray Rothbard, Böhm-Bawerk e tantos outros, da escola austríaca de economia. Por tudo isso, chego à conclusão de que, quando o Grande Betto fala de pensamento único neoliberal, ele está simplesmente usando a expressão como sinônimo de algo próximo a economia como ciência autônoma. Ou simplesmente como sinônimo de qualquer coisa. Especialmente se essa coisa envolver dinheiro. Então, pensamento único neoliberal é aquele de quem pensa em ganhar dinheiro e que dá uma importância significativa a isso em sua vida. Só assim consigo entender por que o senhor Betto diz que os livros que propagam o dito pensamento estão em maioria em relação aos demais, "guardados a sete chaves nos cofres da academia". Para ele, os livros "neoliberais" são quase todos os da seção de economia e também os da seção de administração de marketing. Aí então se revela a armadilha. O intelectual anti-neoliberal não se opõe a teorias concretas. Ele se opõe a um frankenstein que ele mesmo criou e projetou no "sistema capitalista", por meio de um processo biônico que, no fim, leva o neoliberalismo artificialmente fabricado a se confundir com o próprio capitalismo. Os anti-neoliberais, como já pude constatar uma série de vezes (e como se pode ver das próprias bibliografias de seus livros), não conhecem os pensadores de quem se poderia dizer que são neoliberais. Só para citar um exemplo, a política econômica do FMI não é neoliberal - no sentido legítimo do termo. Ela é neoliberal no sentido, digamos, latino-americano do termo (com o qual o senhor Betto compactua). Mas para saber disso, é preciso ler os tais neoliberais, e não os Jack Welchs e os Philip Kotlers da seção de marketing das livrarias. Para começar, eu sugeriria o site da escola austríaca de economia: www.mises.com . O leitor pode cadastrar seu e-mail para receber os "daily articles" e após uns meses descobrirá que o FMI não é neoliberal e que talvez por isso é que ele seja tão prejudicial como instituição que dita as regras da economia latina. O único problema é que sites como esse estão em inglês, assim como a esmagadora maioria dos llivros neoliberais, a que prefiro chamar simplesmente liberais, dada a imprecisão que aquele termo já adquiriu. E aqui está um dos principais motivos pelos quais pessoas como o senhor Betto são tão ouvidas nesse país. Simplesmente porque escrevem em português, sobre algo que não corresponde ao que dizem. E, como esse algo está em inglês, ninguém vai poder conferir. Ou melhor, quase ninguém. Alguns conferem e ficam calados, outros se manifestam, mas são tidos quase como loucos, como o senhor J. O. de Meira Penna, que escreve às segundas no Jornal da Tarde, de São Paulo. E há também um tímido Instituto Liberal, instituição que vive em dificuldades financeiras, mas que ainda assim consegue traduzir alguns livros. Quem quizer pode conferir: www.institutoliberal.org.br. Existe, obviamente, o problema da ganância, da ambição e da competição pelo dinheiro. Negá-lo seria insanidade. Entretanto, denunciar as falsas análises de pessoas como o senhor Betto não implica que se está negando esses problemas. Aliás, essa é justamente uma outra armadilha de que fazem uso os anti-neoliberais. Eles sempre rotulam de apologistas da ambição aqueles que os criticam. Acontece que o neoliberalismo que se costuma criticar não passa de uma certa mentalidade tacanha de empresário mesquinho. Essa mentalidade é a mesma de muitos outros indvíduos que, felizmente, não são empresários. Ela não passa de um senso-comum. Existe o senso-comum e existem as teorias que estão em sua base, as quais ninguém conhece mas todos seguem de maneira surpreendentemente previsível. Nem tudo se explica por esse esquema, mas podemos entender uma boa parte da realidade do mundo se recorrermos a ele. Como já dizia Keynes, "the ideas of economists and political philosophers, both when they are right and when they are wrong, are more powerful then is commonly understood. Indeed, the world is ruled by little else. Practical men, who believe themselves to be quite exempt from any intelectual influences, are usually slaves of some defunct economist. Madmen in authority, who hear voices in the air, are distilling their frenzy from some academic scribbler of a few years back". Traduzo livremente o trecho: "as idéias dos economistas e dos filósofos políticos, tanto as certas como as erradas, são mais poderosas do que comumente se pensa. De fato, o mundo se governa por pouco mais que isso. Homens pragmáticos, que se acreditam totalmente isentos de influências intelectuais, são usualmente escravos de algum economista defunto. Loucos autoritários, que escutam vozes no ar, extraem seu frenesi de algum garatujador acadêmico do passado recente". Evandro Ferreira |
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