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Segunda-feira, 15/7/2002
Do Comércio Com Os Livros
Ricardo de Mattos

"Que outros se jactem das páginas que escreveram; a mim me orgulham as que tenho lido" (Jorge Luis Borges)

Recentemente um jornal e uma revista publicaram o resultado de um levantamento, segundo o qual, um por cento da população brasileira possui uma biblioteca com mais de quinhentos livros. Rendo graças a Deus por fazer parte dessa porcentagem modular. Até hoje, não vi comércio mais frutífero, nem mais rentável espiritualmente do que o dos livros, principalmente levando-se em consideração a aridez em que vivemos.

Quando mais jovem, li um conto de Luis Fernando Veríssimo sobre um homem que se refugiou do mundo em sua casa. Depois em sua biblioteca. Por fim, dentro de um dos livros de que mais gostava. Como o volume já começava a ser devorado pelas traças, o personagem já cogitava em esconder-se dentro de um dos romances encontrados na biblioteca do romance. O erro do mencionado autor foi não esclarecer como é que podemos seguir o exemplo do refugiado.

Não posso ser usado como parâmetro de leitor. Primeiro porque não escrevo sobre mim, apesar da intimidade com os livros. Segundo, porque meu gosto é exagerado e leio acima da média: é uma necessidade vital, e não meramente profissional. Muitos livros ao mesmo tempo, muitos assuntos ao mesmo tempo. Meu trabalho e meu passatempo são a leitura. Tenho dois critérios: procuro a obra que instrua e agrade. Um livro instrutivo, mas de leitura árida é tão desequilibrado quanto um livro bonitinho que nada acrescente.

A aquisição de livro já é algo agradável. Quem compra o livro, conhecendo o que faz, fá-lo pela obra, ou pelo volume em si. Ambos os casos são afectados por um inexplicável sentimento, como se avançássemos no caminho certo do real crescimento. A ressalva acima é feita ao se lembrar de certos alunos que compram um livro indicado pelo professor, colocam o volume displicentemente em uma pasta e só lembram dele na hora de "estudar". Como alguns carregam o material na mão, sem uma pasta ou mochila, ao chegarem em casa, o volume já está suado e amassado.

Isso contudo não é sobre o que se trata, mas de um relacionamento qualitativo. É preferível tratar daqueles leitores que ganham, aos quais é oferecida a oportunidade de ter um livro que os instruirá, os lapidará. Em verdade, quer se compre, quer se seja presenteado, quer se herde, quem se apossa de um livro, sabendo do que ele trata, sempre pode ser considerado um privilegiado.

O volume cai-nos em mãos em diferentes estados. Pode ser uma brochura destroçada, exigente de encadernação que a conserve. Pode ser uma brochura recém saída da gráfica, com as páginas ainda um pouco grudadas. Pode ser um volume encadernado, pertencente ou não a uma colecção uniforme, destas que têm por parâmetro um estilo ou um autor (as famosas "Obras Completas").

Nunca se é somente estudioso, ou somente bibliófilo, apenas realça-se o carácter, sem excluir uma destas faces. Um estudioso que tenha em mãos uma brochura maltratada, deixá-la-á como se encontra, caso verifique tratar-se de uma edição de valor histórico, por exemplo, à qual importa a conservação da capa, inclusive. Uma edição popular de "Dom Casmurro" deve ser encadernada com o passar do tempo. Um exemplar da primeira edição desta obra, jamais deverá ser re-encadernado ou restaurado sem maiores atenções. Contudo, há aqueles que procuram uma obra por si mesma, e quando a encontram, dão pouca atenção a sua apresentação, bastando que ela resista ao manuseio constante, e se deformada, possa ser colocada em capa dura sem remorso. Isso foi feito com meu primeiro exemplar da "Arte Retórica", de Aristóteles, uma brochura hoje toda encardida e riscada. Poder riscar o livro sem constrangimento é uma das vantagens de certas edições.

A capa de um livro muitas vezes impressiona, principalmente em se tratando de brochuras. Quem procura o conteúdo, dá-lhe pouca importância, mas seu papel é de monta para o leigo que adentra uma livraria procurado por um passatempo mais instrutivo. Embora questione-se o gosto admitido em certas editoras, as capas extremamente fantásticas não são as mais agradáveis. Podem ficar berrantes em meio à colecção, posteriormente. Não é questão de uniformidade, contudo, trata-se de exageros irrelevantes e modistas. É querer ultrapassar com o valor artístico da capa o valor literário da obra. E aquele que compra um livro tão somente pela capa acaba arrependendo-se. Ela deve acrescentar, não rivalizar. Possuo um exemplar de "Memórias do Subsolo" que traz na capa uma litografia de Goeldi. Óptimo. A capa complementa a obra, apresenta, predispõe ao que se lerá. Meu exemplar dos "Devaneios de um Caminhante Solitário" tem uma capa ridícula e inexplicável.

Há o caso dos livros de pintura, que podem ser coloridíssimos, conforme a ideia do editor ou do organizador da colecção, como sói acontecer. Em se tratando de uma obra introdutória à pintura de Rubens, dado seu carácter no geral não exaustivo, não é pecado que se use uma obra dele na capa. Todavia, caso se pretenda reunir em um só volume toda sua produção artística, o melhor é providenciar-se uma capa monocromática, revestida por um papel protector plastificado: este é um uso comum (se o papel será conservado, ou descartado, isso é uma opção do proprietário). Um caso desses tem suas especificidades: exigiria um formato grande, para melhor visualização das pinturas e desenhos, e preferencialmente de capa dura, para melhor conservação.

Colecções há, em que os livros vêem numa caixa especial: uma caixa por livro. Muitas vezes isso é ridículo, pois prejudica a prática, o contacto imediato e livre. Parece trabalho para aqueles que coleccionam exemplares, não obras. Um ou outro volume admite-se ganhar assim, mas transformar uma biblioteca em um depósito de caixas é outra coisa. Já li sobre caixas forradas com pelúcia roxa. Deixe-se estas extravagâncias para os álbuns de casamento.

Ponto importante é concernente ao papel empregado na confecção do volume. Três saídas são as mais aconselháveis. Edições populares admitem um papel mais barato, que barateie o custo do exemplar e permitam a aquisição pelo vulgo. Barato, mas resistente, pois o empréstimo de livros é comum.

Os livros de arte exigem papel especial, que valorize a apresentação da obra e garanta sua conservação a mesmo tempo. Isso se aplica também aos livros das ciências médicas, visto que trazem inúmeras fotos do corpo humano, a suprema arte.

A cor do papel não pode atrapalhar o trabalho, devendo ser o mais alvo possível, e grosso o suficiente para que a leitura de uma página não seja atrapalhada pelo texto contido na imediata. Livros há nos quais o papel é tão fino que molha com o suor da mão e fura. Ou a leitura da página 63 é impedida pelo texto da página 64. Ou ainda, depois de um tempo guardado, o livro empena.

O cuidado com a cor do papel deve-se ao envelhecimento deste e à facilidade da leitura com qualquer luz. Papel velho amarela, e um papel bege pode ficar de tal cor que não se consiga mais ler o livro, dependendo da qualidade da tinta usada na impressão. Ler um livro de papel escuro com pouca luz é desagradável e cansa logo, interferindo no estudo do texto. Os livros da colecção "Prosa do Mundo" têm o papel de um bege claríssimo. É uma excelente colecção, mas deve-se observar como estarão os exemplares em alguns anos.

Papel reciclado não deve ser utilizado em livros, salvo talvez, nas edições populares, por causa da facilidade do acesso. Por melhores e mais modernas que seja as técnicas já obtidas pelo engenho, nem sempre são as mais usadas. Guarde-se o papel reciclado para pastas, blocos de anotação e cadernos escolares.

As gravuras devem dizer respeito à obra, evidentemente. Livros técnicos podem perfeitamente conter ilustrações. A regra é a mesma das capas: as ilustrações devem complementar, não rivalizar com o texto. Tenho o "Dom Quixote" ilustrado por Doré, o que já economiza algumas linhas de comentário. Isso tem a muito a haver com a época da obra e os estilos artísticos então em voga. Talvez a ilustração de Doré não fosse conveniente para "Vidas Secas", assim como se devesse rejeitar Goeldi para ilustrar a Divina Comédia ou fazer alegorias para os Ensaios. É certo que Goeldi não é contemporâneo de Dostoievski (o mesmo se diga de Doré e Cervantes), mas foi uma grande ideia valer-se de suas litografias para ilustrar as capas de "Memórias do Subsolo" e "O Crocodilo". Desta forma, ilustrações pertinentes e bem feitas não seriam desarmónicas caso intercalassem o texto. O fato de se recorrer a autores e desenhistas de diversas épocas, entretanto, é mais uma excepção do que uma regra.

Não se usa mais este tipo de coisa, mas não seria nada demais que livros técnicos contivessem uma alegoria ou outra, dividindo capítulos, por exemplo. O perigo é o usuário distrai-se com o desenho, não aprender o que estuda e depositar a culpa nele depois. Há uma ideia medíocre, segundo a qual livros "científicos" não podem ter atractivos, ou que se o texto é bom, não precisa de acessórios. Mera pequenez no pensar. Adquiri recentemente "Da Dissimulação Honesta", de Torquato Accetto. Um brochura bem editada, com quadros ao final de cada capítulo. Uma edição de tal forma simples, bem feita e honesta, que enviei uma mensagem à editora, cumprimentando-a.

Não se deve confundir gravuras com fotografias documentais. Aquelas têm fim artístico, estas são complementares ao trabalho. "Montaigne a Cavalo" tem fotografias da biblioteca do filósofo, de seu castelo, retratos das pessoas importantes, etc. Livros de medicina, engenharia, matemáticas, arquitectura, botânica, zoologia e artes, não podem ser desprovidos das ilustrações sobre o assunto. Pode ser que existam, e isso certamente ocorre, mas não devia.

Considerações sobre o texto extrapolam para o campo da gramática e da estética. Trata-se aqui, inicialmente, da materialidade do livro.

Em suma, um livro bem encadernado (brochura ou capa dura), com folhas limpas, um volume resistente ao manuseio, é o primeiro passo para o deleite no comércio que se estuda aqui. Um livro que estala enquanto é lido, cujas folhas se soltam, cuja capa cai antes de se terminar a primeira leitura, afasta sensivelmente esse deleite e fazem que a atenção ao texto seja abalada. Não se lê tranquilamente ao se perceber que a folha onde se segurava começou a esfarelar ou engruvinhar. É desagradável que a integridade do volume dependa da colocação de um marcador de páginas sob os dedos que o seguram aberto sobre a mesa. Uma revista recentemente noticiou a actual preocupação de certas editoras com a qualidade dos livros que traz ao mercado, bem como as soluções escolhidas para barateamento do exemplar.

Morellet acredita que a conversação é uma das mais perfeitas formas de instrução pessoal, quando o ouvinte atenta ao debate entre contendores filiados a correntes opostas em determinado assunto. Como iniciação, isso é deveras saudável, mas o mesmo ouvinte deverá continuar seu estudo com os livros, sendo de seu interesse aprofundar-se na questão. Dependendo ele ad eternum de debates, sua formação será extremamente incompleta. O texto de um livro já é uma visão depurada do autor sobre determinado tema. O leitor exporá seu entendimento da visão do autor. Desta forma, o mero ouvinte contentar-se-á com um segundo intermediário entre o fato e ele. Fato, autor, leitor e ouvinte: o caminho é muito longo e sujeito a deturpações. Além disso, o ouvinte é impedido do grande deleite que é a consolidação do conhecimento advindo com o diálogo inevitável entre o leitor e o autor de um livro. Quem nunca flagrou-se discutindo com um escritor sobre o que está lendo? Pode ter mais trabalho, mas coisas essenciais só nos chegam após muito labor. O espírito é uma pedra duríssima, requerente de um formão muito afiado. Por isso os alunos saem cada vez piores das escolas e faculdades: quer-se debater muito e ensinar-se pouco. Os mestres pretendem lançar conhecimento tal como se joga milho às galinhas.

Um livro sempre atrai outro, e quanto maior o interesse da pessoa por determinado assunto, maior será a cadeia. Caso o leitor cisme de encadear assuntos (Renascimento Italiano - História dos Costumes - Filosofia Renascentista - Literatura Renascentista - História da Arte Renascentista...) e tenha real interesse em aprender, sua leitura encerrar-se-á com sua morte. Chega a ser inspirador encontrar bibliotecas organizadas durante anos, na qual se reuniram livros documentos, mapas, revistas, jornais, gravuras e até quadros sobre um determinado tema. Há as chamadas "brasilianas", nas quais é patente o esmero do proprietário. Mas a especialização só compensa se feita nestes termos. Uma imensa biblioteca exclusivamente jurídica, ou inteiramente dedicada a um dos ramos do Direito, por exemplo, acaba por desviar, isso é facto real, a atenção de seu proprietário, transformando-o em uma pessoa extremamente aborrecida e de trato social irregular.

Dois são os motivos pelos quais a pessoa lê: ou adquirir conhecimentos, ou distrair-se. A primeira pressupõe uma utilidade mais ou menos imediata a ser extraída da leitura. O vulgo costuma fazer uma distinção bem ilegítima: "livro técnico" é para trabalho; "romance" (e aqui inclui-se toda a Filosofia, e a Arte das Letras, seja poesia, sejam peças teatrais em volume...) é para descansar nas férias, caso não se tenha nada melhor para fazer. Contudo, dependendo da leitura que se faz, pode-se adquirir conhecimentos a qualquer lançar d'olhos sobre uma página. Shakespeare não ensina nada a quem lê suas peças? Moliere não ensina quais os ridículos a serem evitados? Não é trabalhoso ler Kant, e ao final de uma leitura bem feita, por acaso pode-se dizer que tratou-se de mera distracção? A pessoa acostumada à leitura não consegue mais ler superficialmente sequer um jornal, e em se propondo a fazê-lo, numa viagem por exemplo, deverá dedicar-se a algo que realmente só mereça este verniz de atenção. O cérebro trabalha em um ritmo contínuo, o juízo aguça-se, as associações impõem-se, outras leituras são lembradas, tem lugar a comparação.

Para quem gosta, a própria presença dos livros é agradável. Dias há cuja mera lembrança da existência de outras pessoas incomoda. Retirar-se para o gabinete e ver todos os livros arrumados em estantes já alivia o espírito. Uma biblioteca ampla e variada possui todos os tipos de drogas e compensações para as contrariedades quotidianas. Aquele que tem pouco tempo e quer espairecer um pouco encontrará nos contos humorísticos ou nos epigramas, o escape de lembranças das importunações sofridas. Ler Tchápek ou Marcial depois de uma discussão restaura qualquer humor.

O local onde se armazenam os volumes é relevante. Feliz daquele que tem um gabinete de leitura organizado, com espaço suficiente para as novas aquisições. O ideal é organizá-los todos num só aposento, mas melhor ainda se puder usar mais cómodos (contínuos) de uma casa. Quem organiza seus livros sabe onde guardou este ou aquele. Um invasor que tome de um, folheie e devolva-o ao acaso provoca certo desagrado no dono. Uma vez escolhido o cómodo, intitulado biblioteca, e preparadas as estantes, só o dono e principal usuário dos livros saberá como se conduzir em seu interior. Realmente privilegiado aquele que tiver condições de erguer, em meio a um amplo terreno, um pequeno prédio para exclusiva instalação de sua biblioteca doméstica. Tenho um ideal: uma construção de 25m2 de área, com uns cinco metros de pé direito. As fundações devem ser resistentes, pois muitos livros pesam, e o leitor não deverá preocupar-se com a estrutura da biblioteca enquanto lê. As melhores estantes são as que ocupam as paredes inteiras. Um verdadeiro leitor não para de adquirir e comprar livros, principalmente se frequentador de bancas, sebos e espólios. Estantes inicialmente lacunosas podem estar abarrotadas em alguns meses ou anos. As melhores madeiras são a imbúia e o mogno, tendo as prateleiras cerca de cinquenta centímetros de profundidade.

Livros são guardados em pé, um ao lado do outro nas prateleiras, fechadas com portas de madeira e vidro. Revistas são guardadas fechadas em armários, visto que sua degradação é mais acelerada. Jornais são armazenados em volumes seleccionados por ano, ou por mês, embora haja quem recorte e cole em cadernos apenas aquilo que interessa. Nada de saco plástico ou embrulhos de papel: isso dificulta de indispõe à consulta.

Há que se mencionar a higiene esperada em uma biblioteca. Já tive arrepios ao ver livros meus manuseados por mãos há horas sem lavar. Nunca sento para ler, trabalhar ou estudar sem lavar as mãos, se antes estava no quintal ou no jardim, brincando com a cachorrada ou mesmo comendo. E mesmo assim, surpreendo minhas próprias digitais nas páginas, vez ou outra, o que me aborrece.

Já o recinto e armários onde são armazenados os livros, só deveriam receber faxina com a presença do proprietário. Sempre eu quero um armário limpo, eu retiro os volumes, coloco-os n'um lugar, peço que se limpe e virem as prateleiras, para só então eu mesmo, certificado de que os produtos empregados já secaram, devolvê-los ao lugar. Difícil eu deixar livros fora de seus lugares, justamente por isso. Em meu quarto, cinco volumes estão em cima de uma mesinha. Quem limpa não tem muito o que mexer. O mesmo no escritório: recolho os volumes soltos pessoalmente.

Ricardo de Mattos
Taubaté, 15/7/2002

 

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