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Terça-feira, 13/8/2002 Babação do popular Evandro Ferreira Em seu artigo de 3 de agosto em O Globo, o professor Olavo de Carvalho menciona a "classe capitalista idiota, incapaz de enxergar no capitalismo nada além da sua superfície econômica e ignorante de tudo o que é preciso para sustentá-la". As bases do capitalismo - e de qualquer outro "modo-de-produção", já que a humanidade é a mesma em todos eles - são políticas, ideológicas, culturais, morais, administrativas e militares, ainda segundo o autor. Como o referido artigo é brilhante, resolvi tomar um de seus aspectos como tema de discussão, a saber, a tal base cultural do capitalismo. Sobre esse assunto, tenho muito a dizer. E posso começar dizendo que essa base se assemelha, no Brasil de hoje, muito mais à de um regime socialista do que de um capitalista. Como prova disso, basta que qualquer aluno de faculdade de comunicação preste um pouco mais de atenção à sua volta. Mas, como nem todo mundo é aluno de comunicação, explico-me. É que as faculdades de comunicação têm esse hábito de tomar como objeto de pesquisa as manifestações culturais. Até aí, nada de errado. Acontece que a esmagadora maioria das teses e monografias que se escrevem nessas faculdades toma, de algum modo, a cultura popular e a eleva às alturas. Não tenho estatísticas, mas tenho meus olhos e ouvidos. E durante todo o tempo em que estive inserido no meio acadêmico e ainda hoje, vejo as verbas de pesquisa e produção choverem para a realização de documentários em vídeo sobre qualquer micro-manifestação cultural que os alunos sejam capazes de encontrar em alguma biboca desse país enorme, desde cancioneiros às margens do Rio São Francisco até fazedoras de cêramica em uma cidadezinha de interior. Artesanato já virou arte há muito tempo aos olhos da universidade. E tradições locais são mais importantes que Shakespeare, Dante ou Manuel Bandeira. Mas por que isso acontece? Eu tenho dois palpites. Um é que o legado cultural ocidental é atualmente visto como elitista e, como tal, não deve mais ser transmitido. Além disso, pensa-se que Shakespeare (ou qualquer outro clássico) já faz parte dos arquivos da humanidade, já está salvo e garantido. Ao contrário, as artesãs de cerâmica são pobres e moram longe, portanto precisam ser divulgadas, prestigiadas, reconhecidas. Então pergunto: quem já leu Shakespeare? E quem já viu peças de cerâmica e as comprou? Se as coisas continuarem como estão, chegará o tempo em que ninguém mais saberá quem é Shakespeare (esse é só um exemplo) e as peças de cerâmica serão expostas em museus e idolatradas pelos críticos de arte e jornalistas. O segundo palpite é mais uma constatação. Um país cujos estudiosos se preocupam mais com Patativa do Assaré do que com Villa Lobos só pode ser um país louco. Ou então socialista. Quando eu estudava comunicação, fui obrigado a participar de uma articulação temática interdisciplinar (traduzindo: um bando de professores confundindo tudo) entre três professores de diferentes cadeiras. Um deles tinha um amigo que era dono de uma pousada em uma minúscula cidade do interior de Minas e lá organizava um "campeonato de mentiras", do qual participava a população local, cujos membros possuem uma antiga tradição de contar "causos". Todos os alunos foram obrigados a passar o semestre inteiro realizando um exercício de "adaptação" do conteúdo teórico das disciplinas ao tema da mentira. A tradição dos habitantes da pequena vila se transformou então em uma importante manifestação cultural que estava sendo "destruída" pela modernidade, a mentira virou um interessante valor a ser defendido com o auxílio de teorias relativistas e a ser explicado e "trabalhado" sob o "ponto de vista" das teorias de Pierre Lévy sobre as etapas do desenvolvimento da linguagem, descritas sob uma ótica tecnologicista no livro "As tecnologias da Inteligência". Enfim, o que quero dizer com tudo isso é que uma tradição popular no máximo interessante se tornou uma manifestacão cultural riquíssima quando reconstruída segundo os atuais métodos acadêmicos de supervalorização da cultura popular. Que métodos são esses? Tomar uma manifestação qualquer, enxertá-la com reflexões abstratas sobre polissemia, intersubjetividade, hegemonia cultural etc etc. Depois, resgatar um pensador qualquer que valorize os elementos necessários à apologia do tema em questão (no caso, Nietzsche, para o tema da mentira). Após semanas de seminários e discussões em sala, o tema passa a ser explorado no canal universitário local e depois em TVs educativas e estatais. Geralmente os temas abordados nas universidades, sobretudo nas incontáveis teses de pós-graduação sobre cultura popular, também viram documentários e são exibidos em salas alternativas de cinema, para a degustação e o auto-engrandecimento da classe "cult" universitária, que entre uma leitura de Deleuze e um comentário sobre o imperialismo ianque arranjam um tempinho para prestigiar o seu Zé que mora em Pindamonhangaba do Norte e toca viola como um mestre do desafino. Não tenho nada contra o seu Zé nem contra nenhuma das figuras populares desse país. Só não suporto essa "babação de ovo" com cultura popular. Só não suporto saber que a valorização excessiva da cultura popular é um dos passos decisivos para o empobrecimento e rebaixamento do nível de inteligência das classes letradas, caminho sem volta em direção ao comunismo nos moldes camponeses. Enquanto as pessoas humildes e batalhadoras que moram nas favelas e nos campos - exceto as que já foram doutrinadas - sonham em ter um diploma e serem "dotores" (pergunte à sua empregada o que ela quer para seus filhos), os acadêmicos gastam todo o seu tempo estudando o seu Zé, querendo ser como ele: simples, humilde e honesto. Certamente podemos aprender com a humildade e a honestidade das pessoas simples. Mas como fica todo o conhecimento dos grandes clássicos da humanidade e que ninguém lê hoje em dia? A postura do estudioso acadêmico é a de quem já aprendeu o que tinha de aprender e agora vai estudar os ignorantes, para aprender com eles. Acontece que esses estudiosos, em geral, não leram nada além de meia dúzia de livros francesinhos contemporâneos ou no máximo modernos. Experiemente escrever bobagens aparentemente cultas nas suas provas, para ver se seu professor sabe das coisas. Certa vez escrevi em um trabalho que a política era um dos quatro discursos de Aristóteles. Vocês acham que o professor corrigiu a afirmação? Pelo contrário, ele adorou cada linha do que eu escrevi. O tema abordado em sua disciplina era claramente filosófico, mas ele não sabia nada de filosofia. A classe média desse país - seguindo indiretamente as tendências acadêmicas - está cada vez mais convencida de que chique é ser ignorante, de que os pobres são mais sábios que os intelectuais. Se tomarmos como exemplo os intelectuais francesinhos moderninhos cultuados em nossas faculdades, acho até que isso é verdade. Fico imaginando se o seu Zé conseguisse completar o ensino médio, chegasse à universidade e se visse em algum documentário em vídeo. Provavelmente perguntaria: "vocês gastam todo esse dinheiro para mostrar um sujeito sentado em um banquinho, tocando viola desafinado? Onde está o conhecimento dos doutores? Eu sei que eles sabem mais do que eu e quero aprender o que eles sabem". Infelizmente não haveria então nenhum professor para ajudar o seu Zé. P.S.: Juntamente com dois amigos, abri um blog na semana passada. Quem quiser visitá-lo, prometo que não se arrependerá. E se se arrepender, poderá expressar com total liberdade os motivos do arrependimento! O endereço é: www.agonizando.blogspot.com. P.S.2: No meu artigo "Pensamento Biônico", a citação de Keynes ao final pode fazer parecer aos desavisados que o autor era liberal. Longe disso! Evandro Ferreira |
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