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Terça-feira, 20/8/2002
Eles são o Samba
Waldemar Pavan

Germano Mathias - Talento de Bamba - Gravadora Atração
"Quero somar muito mais belezas
Quero multiplicar verdades
Quero subtrair tristezas
Quero dividir felicidades"
(trecho da música Validade Vencida - Elzo Augusto)

Germano Mathias nunca fez parte de minhas preferências musicais, pelo contrário, confesso até um antigo ranço-desdém e também antiquíssima antipatia por sua verve sambística, explico a desmesurada nóia: conheço GM desde o tempo em que o cavalo de Tróia era potrinho, ops!, um pouco menos, desde a época em que não existia ainda emissora de televisão movida a vídeo-tape, na sala de casa a televisão valvulada preto-e-branco, na cozinha o refrigerador frigidaire. Germano Mathias era presença constante nos programas ao vivo "Clube dos Artistas" e no vespertino "Almoço Com As Estrelas" - apresentados pela indefectível dupla Airton e Lolita Rodrigues - tempo esse em que eu era apenas um pequeno garoto que amava os beatles e os rolling stones. O tempo passa, o tempo voa e quase quatro décadas depois inacreditavelmente sento-me frente a um computador ("O que é isso?", perguntaria naquele tempo) para derramar todos os meus mais melosos encantos para Talento de Bamba, o mais recente disco deste raro ícone vivo do samba paulistano. Destituído de qualquer afetação nostálgica, confesso para você a minha grande emoção em reencontrar em disco o Senhor Germano Mathias, ele agora aos 68 anos, quatro décadas depois e desse encontro restou-me apenas uma clara certeza: Germano Mathias e eu estamos melhores do que há quatro décadas, Germano mais do que eu, o tempo foi o senhor bondoso e qualitativo para nossas vidas, que bom foi constatar e poder me redimir de todos os meus enganos passados sobre Germano Mathias, que maravilha é estar neste mundo-véio-sem-porteira, mais especificamente nesta "São Paulo, Mãe-Madrinha" cantada por Germano Mathias:

"São Paulo, super mãe, madrinha
De um progresso que caminha
Geração a geração
Cidade que é tua, que é minha
E que cabe inteirinha
Dentro do meu coração
A força desse teu calor humano
Está no cotidiano e na miscegenação

"São Paulo
Tenho mais de mil motivos
Tantos pontos positivos
Pra te amar de paixão."

Talento de Bamba é muito mais que qualquer adjetivo, é também uma carinhosa homenagem de Germano Mathias ao compositor paulista Elzo Augusto, autor de todas as 14 músicas desta jóia de inestimável valor do samba paulista. Tudo neste disco é perfeito, a alegria contagiante de Germano Mathias, os simples e arrebatadores versos do Elzo Augusto, os arranjos conduzidos por Arnaldo Galdino, a percussão pontualíssima de Oswaldinho da Cuíca e Julio César, o violão sete cordas de Israel B. de Almeida, o trombone de Bocato e o banjo do também jovem compositor paulista Emerson Urso. Um item mereceria quase que um capítulo à parte: o encarte. As fotografias coloridíssimas dos fotógrafos paulistanos Rui Mendes e Arnaldo Junior destoam diferencialmente - para mais - de todas outras capas de discos de sambistas, Germano Mathias espertamente reconhece a diferença e agradece aos fotógrafos "pelas fotos que renovaram o véio". Também aproveito a boa ocasião para enaltecer Germano Mathias e a todos os seus colaboradores pelos bons momentos musicais que proporcionaram em Talento do Samba, de todos os meus enganos constatados este foi o que me deu maior alegria em reparar.Boa iniciativa da gravadora Atração que na sequência do lançamento de Germano Mathias lançou também o novo cd de Thobias da Vai-Vai - que também é sambista paulista - interpretando timaço de compositores, no cardápio Ataulfo Alves, Ary Barroso, Dorival Caymmi, Haroldo Lobo, Paulinho da Viola, Zé Keti e Adoniran Barbosa.

Roberto Silva - Volta Por Cima - Gravadora Universal
Destacar a exigência e apuro técnico que 'ranca pena' da enjoeira é lugar-comum quando se fala de João Gilberto. Pois é o baiano quem qualifica este cantor carioca: "É o melhor". Paulinho da Viola, em recente entrevista ao site cultural La Insignia, afirmou: "Meu pai gravou com muita gente, com muitos cantores da música brasileira, de serestas, com Silvio Caldas, com Orlando Silva. Por exemplo, uma das pessoas que me influenciaram, mesmo porque eu o ouvia muito e, inclusive, assisti meu pai gravando com ele, foi um cantor chamado Roberto Silva, que é conhecido como o Príncipe do Samba e que até hoje canta de uma maneira maravilhosa, que gravou muitos sambas de Geraldo Pereira, Wilson Batista e Nelson Cavaquinho. Estas foram as grandes influências"

Roberto Silva é o Príncipe do Samba aos 82 anos. Se a referência a príncipe faz com que você pense em um jovem, não há equívoco qualquer em sua impressão, Roberto Silva é um jovem senhor que - do alto de sua apenas cronológica e octagenária idade - exibe absurda jovialidade e vitalidade no canto e na invejável forma física, creditada à distância dos prazeres mundanos do tipo fumar, beber e vazar madrugada adentro na balada. Um sambista que não bebe e não fuma, não é incrível?

João Gilberto também costuma recomendar, com fundamento: "Não o confundam com Orlando Silva". Roberto Silva (1920) é quase contemporâneo de Orlando Silva (1915), o "cantor das multidões". Ambos começaram no rádio com a mesma idade: 18 anos. Roberto Silva admirava o talento de Orlando Silva, tanto que na falecida gravadora Marcus Pereira gravou o disco Roberto Silva homenageia Orlando Silva, pinçando do repertório de Orlando 13 das muitas belas canções e aqui cessam-se as semelhanças entre os Silva, cessam de verdade.

Diferentemente da empostação e grandiosidade da voz de Orlando Silva, Roberto Silva notabilizou-se por sua voz de colocação exata e comedida. Roberto canta como um namorado que vai fazer serenata à mulher amada com a preocupação de não acordar os pais da moça, a grandiosidade de sua arte não está na extensão da voz, mas na delicadeza da interpretação e na clareza com que sublinha as palavras.

Tive a oportunidade de ouvir pela primeira vez a voz de Roberto Silva no ano passado, com o triplo relançamento, pela EMI, da série "Dois em Um - Dois LP's em um CD", Descendo o Morro e Descendo o Morro Vol. 2, seguido de outro contendo os volumes 3 e 4 da série Descendo o Morro, já o terceiro CD de Roberto Silva reuniu os LP's A Hora e a Voz do Samba e Receita do Samba.

Uma compilação contendo dois cd's também relançada pela EMI, da série Dois CD's Bis - Cantores do Rádio acrescenta mais 28 músicas da extensa discografia de Roberto Silva, sendo que pelo menos 20 músicas ainda não haviam sido relançadas pela gravadora.

Todas as séries citadas são de preço popular e você ainda pode encontrá-las com preços variando entre R$ 10 e R$ 20. Outra compilação de preço popular, mas que repete as músicas dos álbuns Descendo o Morro, também pertence à EMI, chama-se Raízes do Samba.

A voz e os competentes arranjos não encerram o assunto Roberto Silva, a escolha de autores - Wilson Batista, Ataulfo Alves, Geraldo Pereira, Zé Keti, Lupicínio Rodrigues, Herivelto Martins, Mário Lago, Bororó, Nelson Cavaquinho, David Nasser, Jair Amorim, Evaldo Gouveia, Noriel Vilela e até Nelson Rodrigues (Nega de Maloca) - reserva a Roberto Silva destaque ímpar no quesito rigorosa e qualitativa seleção autoral, além de, quase por osmose, cultivar as melhores pérolas musicais da música brasileira do século passado divididas entre os mencionados relançamentos da gravadora EMI : A Mulher de Seu Oscar, Aos Pés da Cruz, Agora é Cinza, Ai! Que Saudade da Amélia, Se Acaso Você Chegasse, Falsa Baiana, Rugas, Escurinho e Curare, você certamente descobrirá através da audição destas preciosidades por que João Gilberto não somente julga Roberto Silva o maior cantor do Brasil, mas que também aprendeu com o mestre do canto discreto a beber da melhor água da mais cristalina fonte de compositores deste brasilzão sem eira nem beira.

Com todos estes predicados Roberto Silva não gravava há 30 anos - pasmem, tragam todos meus estoques de sais aromáticos -, desligado do passado e fincado com o pés no presente declarou para a nossa alegria recentemente: "Eu estava quietinho no meu canto, foram mexer comigo e agora não paro mais". O motivo de tamanha animação não podia ser outro além da alegria estar de volta ao mundo fonográfico com o absoluto CD 'Volta Por Cima - Roberto Silva', para a gravadora Universal, que, para não fugir à regra, contém 13 belíssimas canções do repertório brasileiro:

Notícia - Nelson Cavaquinho
Volta Por Cima - Paulo Vanzolini
A Rita - Chico Buarque
Gosto Que Me Enrosco - Sinhô
Da Cor do Pecado - Bororó
A Primeira Vez - Bide e Marçal
Inquietação - Ary Barroso
Normélia - Raymundo Olavo e Norberto Martins
Meu Sonho É Você - Altamiro Carrilho e Atila Nunes
Quem Mente Perde a Razão - Zé da Zilda e Edgar Nunes
Bohêmio - Ataulfo Alves, J. Pereira e Orlando Portela
Nova Ilusão - Pedro Caetano e Claudionor Cruz
Juracy - Antônio Almeida e Cyro de Souza - Ao Vivo Com Caetano Veloso

Como você pode observar, Roberto Silva não perde mesmo a antiga mania de escolher, dentre o extenso cancioneiro nativo, os melhores autores e as melhores canções para vesti-las com sua pontual e elegantíssima interpretação, o homem é impressionantemente xique nu úrtimu. Desta vez dá para te relatar o time de músicos participantes, tá sentadinho? Então segura:

Arranjos por Cristovão Bastos, João Lyra e Leandro Braga.
Violão 7 cordas: Tony 7 Cordas
Cavaco: Alceu Maia
Bandolim: Pedro Amorim e Ronaldo do Bandolim
Pandeiro: Oscar Bolão
Trombone: Aldivas Ayres
Clarinete: Dirceu Leite
Violão: João Lyra
Piano: Cristovão Bastos e Leandro Braga

Encarte lindo, ilustrado com fotos, letras e autorias, qualidade de gravação excepcionalmente boa. Para concluir, o texto de contra-capa lavrado por Zeca Pagodinho:

"Eu queria ter vivido no tempo das serestas, das músicas com conteúdo poético e versos ricos, dos violões tocados com perfeito entrosamento harmônico, ricos de improviso e criatividade. Ouvindo as músicas da geração dos meus tios, avós, dá-me a sensação que fiz parte desse tempo. Me identifico, me realizo, viajo...Sinto minh'alma alimentada de versos, de calma, de música, de Deus. Dos grandes mestres que me foram mostrados, em forma de canção, uma das jóias raras ainda se apresenta viva entre nós. Autêntica, intacta e Brasileira. Falo de Roberto Silva".

Waldemar Pavan
São Paulo, 20/8/2002

 

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