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Quinta-feira, 22/8/2002 Língua de fora Adriana Baggio Você, que está lendo este texto, provavelmente se acha uma pessoa culta. Deve ter um bom nível de conhecimentos gerais. Transita bem por assuntos considerados importantes, como literatura, música, política, artes. E o mais básico de tudo: domina perfeitamente o código no qual todo esse conteúdo foi elaborado, a língua portuguesa. Em contrapartida, você, como pessoa culta, que lê bem, compreende a maioria dos textos, redige com clareza e até com algum talento, torce o nariz para o linguajar popular. Aquela forma tosca e grotesca que se houve nas ruas, nas feiras, nas conversas das empregadas domésticas, entre as pessoas que vivem na roça ou em regiões diferentes daquela onde você vive. Os erros de concordância, a troca de letras, a má colocação da sílaba tônica, representam verdadeiras agressões ao seu ouvido. Ouvido que foi treinado desde cedo, na escola, a aceitar o português padrão e oficial, e a rejeitar a forma natural da linguagem coloquial. É graças a essa educação que você, hoje, pode usar a língua corretamente, permitindo seu acesso a círculos no qual o domínio da língua padrão é pré-requisito para ser aceito. Junto com todos os benefícios que o domínio da língua traz, vem o preconceito. Alguns dos mais arraigados dizem respeito ao local do Brasil onde a língua é falada de maneira correta. Uns dizem que é no Maranhão. Outros dizem que é no Paraná. Quem mora no sul ridiculariza o sotaque nordestino. Quem é do nordeste rejeita o sotaque do sul. E assim, esquecendo das nossas origens e da maneira pela qual nossa cultura foi formada, vamos perpetuando mais um preconceito da enorme lista que já impregna nossa sociedade. Esse tipo específico de preconceito, o lingüístico, tem conseqüências mais graves do que as risadas de escárnio ou as ridicularizações promovidas pelos estereótipos na TV. A partir do momento em que a sociedade desconsidera a pluralidade das maneiras de falar existentes no Brasil, o processo de exclusão social aumenta. Assim, além da pobreza, da cor, da sexualidade, da religião, a maneira de falar também acaba se tornando um fator de afastamento e intolerância. E, por incrível que pareça, tudo começa na escola. Falar da falta de preparo dos professores já virou mais do que lugar-comum. Mas, infelizmente, o fato de voltarmos sempre ao mesmo ponto reforça a consciência de que grande parte das soluções para os problemas do nosso país passa pela educação. O professor é mal preparado desde os tempos de aluno. Ele vai ensinar o que aprendeu. E a gente não aprende que existem diversas maneiras de falar a mesma coisa em português, e que isso significa diferença, e não certo ou errado. A criança que cresce tendo contato com a língua falada de maneira mais coloquial chega na escola e é obrigada a desaprender tudo. Além do esforço em ter que correr atrás das crianças que já dominam a língua dita correta, o aluno ainda sofre o preconceito por ser diferente, por estar fora das normas. E qual seria a solução? Esquecer a língua portuguesa formal e adotar o falar coloquial? É claro que não. O que a escola precisa fazer quanto ao ensino do português é reconhecer as diferenças, explicar por que essas diferenças ocorrem e facilitar o acesso das crianças ao domínio da língua padrão, para evitar essa modalidade de exclusão. O academicismo é muito criticado por estar em uma torre de marfim, à qual apenas poucos iniciados têm acesso. E é nessa torre que a gente acaba tendo consciência de algumas coisas extremamente importantes, que deveriam ser divulgadas para todo mundo, e desde cedo. Os "erros" da linguagem coloquial são um exemplo. A gente não fala como escreve. Mas para algumas pessoas, essa distância entre fala e escrita é maior ainda. Ao invés de tentar descobrir porque isso acontece, preferimos virar a cara e criticar. E quando isso acontece na escola, é terrível. Quem se preocupou em ir um pouquinho mais longe descobriu que as diferenças entre língua padrão e não-padrão, na verdade, repetem alterações que aconteceram na evolução das línguas. A troca do "L" pelo "R", como em "pobrema", por exemplo, está presente nas transformações sofridas pelo latim, e que deram origem ao português. A palavra "igreja" é, em latim, "eclesia"; em francês, é "église"; em espanhol, é "iglesia". Se a gente considera um sinal de matutice a troca dessas duas letras, então é sinal de os falantes da língua portuguesa são todos uns matutos, enquanto que nossos colegas franceses e espanhóis conseguiram manter a "pureza" do latim. Os exemplos de diferenças entre língua popular e erudita que também aparecem na transformação do latim para o português são inúmeros. As causas são basicamente fisiológicas. A lei do menor esforço, pela qual todos nós somos afetados, também age na hora da fala. Assim, sons parecidos, ou realizados em posições muito próximas dentro da boca, acabam sofrendo assimilações ou transformações, que dão origem a diferentes maneiras de pronunciar a mesma palavra. A educação formal ensinada na escola barra esse tipo de transformação. Mas quem não tem acesso a essa educação, acaba perpetuando as mudanças fonéticas. Na prática, o que a escola legitima é um cruel sistema de exclusão. Para entrar na escola, é preciso dominar a língua padrão. Mas para dominar a língua padrão, é preciso ir à escola. Quem não consegue superar essa dificuldade acaba sem o domínio do português padrão, e a exclusão se perpetua. Para evitar que isso aconteça, é preciso que a escola e a sociedade aceitem a existência de uma forma não-padrão de linguagem. A partir desta aceitação será possível mostrar à criança a diferença entre o que ela fala e escreve. Veja bem, a palavra chave é diferença, e não "certo" e "errado". É incoerente dizer que a forma escrita "muinto" é errada, se as pessoas falam assim. É mais justo e efetivo explicar que para essa forma falada, a forma escrita é "muito". Só dessa maneira a criança passará a perceber, e poderá conviver pacificamente, com duas formas distintas: uma coloquial, falada, e outra formal, escrita, que vai lhe permitir o acesso à cidadania. Do mesmo jeito que, devagar, a gente vai aprendendo a aceitar diferenças na cor da pele, na sexualidade e na fé, precisamos enxergar de outra maneira as variações na linguagem usada entre pessoas de diferentes idades, origens, graus de escolaridade. Caso contrário, sutilmente, de forma silenciosa e invisível, a exclusão lingüística vai puxar para trás todo o progresso que a gente tem conseguido em termos de liberdade de expressão, de conquista de direitos, de acesso à cidadania. Não é o caso de abandonar o português formal. É compreender a existência de uma outra forma de falar, e de facilitar o acesso ao domínio da linguagem padrão, para que mais gente seja capaz de entender e refletir sobre as entrelinhas dos acontecimentos. Adriana Baggio |
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