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Quarta-feira, 28/8/2002
O Herói Devolvido
Rennata Airoldi

Resolvi fazer uma série especial de reportagens. Entrevistar os autores que tiveram suas obras adaptadas para o teatro por Mário Bortolotto e que estão em cartaz na "II Mostra de Teatro 'Cemitério de Automóveis'". A primeira vítima, brincadeira, foi Marcelo Mirisola, autor do livro de contos: "O Herói Devolvido". Publicado em 2000 pela Editora 34, está disponível em todas as boas livrarias. A peça está em cartaz no Centro Cultural São Paulo, todos os domingos às 18hrs. até 29 de setembro. Uma tarde de sol, um café, uma boa prosa!

Marcelo, você nunca teve nenhuma obra adaptada para teatro, cinema ou televisão. Como foi para você quando o Mário Bortolotto te procurou? O que passou pela sua cabeça?

Eu confio no Mário. Antes de tudo ele é meu amigo, eu levei isso em consideração. Talvez se fosse outra pessoa, eu ficasse meio com o pé atrás. Mas como era o Mário eu falei: tudo bem, vou me arriscar, não quero nem saber. Se der "chabu", que se dane. É questão de confiança mesmo. Agora, se fosse outra pessoa, eu ia encher o saco. Ia ser ranzinza, ia cobrar, ia querer ver o texto antes. Mas com o Mário eu nem me importei: faça o que quiser! Nem vi o texto antes, eu confio, vamos ver o que acontece, né?

Faz tempo que você conhece o Mário?

Eu conheci o Mário através da revista "Medusa". Eu publiquei um conto do "Herói" nesta revista de Curitiba e o Mário também escreveu para a mesma edição. A gente se conheceu na festa de lançamento. Mas antes disso, o Reinaldo Morais (autor de "Tanto Faz", obra também adaptada para a Mostra) já havia me falado dele. Aí conheci o Mário Bortolotto e a Fernanda D'Umbra.

Como autor, você sente a falta de domínio da obra quando alguém decide adaptá-la, por isso dá um certo medo?

Acho que como ranzinza que sou, talvez. Eu sou muito ciumento com as minhas coisas. Às vezes, saem trechos de livros, contos meus, numa revista ou jornal e, por causa de uma vírgula errada, eu sou capaz de ligar e reclamar. Eu cuido. Tem gente que diz que depois que está publicado, não pertence mais ao autor. Conversa mole. "Tá na vida, tá publicado..." Claro que não. Tem a minha alma na obra; virada do avesso... Você percebeu? É sério isso aí.

Quando o Mário te falou "Vou adaptar 'O Herói Devolvido'", como foi? Qual foi a expectativa?

Eu não fiquei ansioso, nada disso, porque, como eu disse, confiei nele. Quer fazer a adaptação, faz. Seja o que Deus quiser! E ver as coisas, cenário, tudo, foi com uma frieza, um distanciamento... para o qual eu já vinha me preparando há mais de um ano (quando ele falou comigo a primeira vez). Pra mim foi então tranqüilo. Evidente que é meu livro, minha obra, mas a adaptação é com o Mário. Eu não tenho mais nada a ver com isso. Acho que fui até frio demais... Gostei de ver, mas não foi um acontecimento sobrenatural.

E você gostou do que viu?

Gostei, adorei, acho que tive muita sorte. Foi a melhor adaptação que o Mário fez na Mostra. Pelo menos, é o que eu acho. Ele conseguiu levar a demência contida em algumas partes da obra na medida certa para o palco. Eu dei sorte por causa do Fábio Espósito também (ator que interpreta Marcelo na peça).

E o Marcelo da cena, é seu "alter ego"?

Claro que sim! Não existe ficção. Eu parto da minha realidade. Ali, tem a realidade do Mário quando ele se defrontou com meu texto surgindo: a realidade da cena; a realidade dos atores. Mas o ponto de partida foi meu: minha vida.

Como é o seu processo de criação?

Ah, eu primeiro tenho que me apaixonar. Inclusive eu me apaixono pelas entrevistadoras (risos).

Bom, você era advogado. Como surgiu a literatura para você?

Acho que antes de escrever eu já era "escritor". Quando eu era um bebezinho, eu via aquela latinha de talco "pom pom", e a minha reação diante dela é a mesma reação que eu tenho hoje, quando peço um café, estaciono o carro... Ou seja: eu sempre fui escritor. A gente não sabe que é escritor. Não sei os outros, mas eu nunca desconfiei. Então chega uma hora que, bom, eu não sei fazer nada na minha vida. Como é que pode? Aí eu li "Pergunte ao pó", de John Fante. Eu falei: "O cara é igualzinho a mim! Faz tudo errado. Nada dá certo na vida dele, e é um escritor! Vai ver que eu devo ser escritor também..." Aí comecei a me dar conta das reações que eu sempre tive diante da vida, das coisas, das pessoas - é reação típica de escritor, de artista...

Outro dia conversei com uma amiga: o ator descobre que tem uma lente de "artista" no olho. Tudo à sua volta, as pessoas, os gestos, o mundo, é visto através dessa lente. Às vezes, até incomoda as pessoas que estão por perto. Por exemplo: eu sento num lugar e olho tudo em volta, observo todos os movimentos, mesmo sem querer...

Então vale para ator também? Chega uma hora, aparece na sua vida, fica muito evidente. Para algumas pessoas deve ser diferente. Tem gente, como meu pai, que seria um ótimo escritor, pela maneira como organiza as coisas. Mas passou a vida inteira fazendo outra coisa e nunca se deu conta. Agora não sei se foi sorte ou azar descobrir isso! De repente, se eu não soubesse que escrevia, poderia estar mais feliz. É uma droga. O vampiro é a metáfora do escritor. A gente vive das coisas que acontecem, da alma dos outros, você pode chamar de "alma", do que você quiser. Eu sou um sugador. Eu queria não fazer isso, não usar as pessoas... Eu uso e descarto, às vezes até sem querer. Isso o que é? Arte? Vampirismo? Que diabo é isso aí... uma infelicidade? O importante é que estou escrevendo meu quinto livro. Então agora eu sei quem sou. Eu sei exatamente qual é a minha desgraçada função.

Cada artista carrega o seu fardo. É uma espécie de celibato. Mas o ator tem uma relação mais complicada com a imagem que o autor nem sempre tem. O autor tem uma relação mais direta com as "palavras" e o ator com a "imagem". Eu represento aquilo que as pessoas estão vendo em mim, a minha imagem é determinante no processo. Já no caso do autor, é a palavra. Vocês não tem a mesma fixação pela imagem que o ator tem.

Rennata, como você é inteligente. É isso mesmo! (risos e conversa sobre a sinceridade e dissimulação do ator e das pessoas. O ator é sincero ou ele finge mais facilmente que o autor? Como ele faz para voltar à realidade?).

E você já pensou em escrever para teatro ou cinema?

Não, eu não tenho competência para isso. Nos meus textos não tem quase diálogo. Nem sei como o Bortolotto fez. Eu teria vontade de escrever um roteiro, ganhar dinheiro, mas não tenho competência. Como me conheço, eu não vou assobiar e chupar cana ao mesmo tempo. Tem gente que faz isso, e eu não acho legal. Sabe o que acontece? fica claro que o cara está desperdiçando o talento dele. Podia fazer menos coisas com mais virulência.

E os projetos futuros?

Eu não tenho projetos. Quem tem é engenheiro, arquiteto... Eu acho que, se eu pudesse, meu plano seria acabar com tudo isso. O suicídio. Meu projeto é me matar, acabar. Todo mundo quer ser feliz. Acontece que fazendo o que eu faço, escrevendo, eu nunca vou ser feliz. Eu sei que com isso não vai dar... É meio trágico e é sério. Eu penso muito nisso...

Na peça "O Herói Devolvido", quem você acha que se aproxima mais da realidade que você efetivamente viveu?

Olha, teve uma personagem que ficou melhor que a original. Quer dizer, várias. As minhas mulheres do texto são meros "frankensteins". A que me surpreendeu mais, que eu gostaria que tivesse sido exatamente como na peça, foi a psicanalista, a Margô, que a Aline Abovsky fez muito bem. Quando escrevi o texto, era aquilo lá. E o Xepa (Fábio Espósito) é fundamental. Mas todos estão ótimos, já que são fragmentos de várias pessoas. A Aline está exatamente como eu gostaria que ela fosse.

É complicado pensar numa adaptação de vários contos para uma única peça que seja "assimilável" pelo público. Você achou que seria difícil?

O Mário teve que se apegar a alguma coisa. Ele se apropriou da tristeza e da demência contidas em alguns contos. Agora, o lirismo e outros arroubos ficaram de fora. É difícil, eu nunca pensei no livro para teatro. É impossível juntar tudo numa peça só. Mas eu estou muito feliz com o resultado.

E, quando você veio ver a peça, viu as pessoas rindo, reagindo a sua história, como foi?

Me surpreendi na estréia, porque o Mário não acrescentou uma vírgula ao meu texto. O que está no livro foi convertido em diálogo. Eu não entendi até agora como ele conseguiu fazer isso... Pensei: "Nossa, quem foi o demente que escreveu isso!". Eu ficava olhando para os lados: "Pô, de repente, se descobrem que fui eu...!". Fiquei preocupado. Parece que teve uma senhora abandonando a peça no meio, escandalizada, reclamando, etc. Quer dizer: não foi um distanciamento assim "completo"; eu fiquei preocupado. Quando acabou a peça e as pessoas aplaudiram, a Fernanda D'Umbra disse: "O Marcelo está aí"! Quando começaram a bater palmas, senti que estava caindo num buraco negro, que estava sendo sugado ou coisa parecida. Aquilo foi me engolindo, as palmas, parece que fiquei cego com aquilo, não via nada...

Você não acha que um dia você ainda pode arriscar um roteiro ou uma peça?

Pode ser, mas no momento estou escrevendo um outro romance. O tempo do romancista é diferente. Um ano, dois. Conto é outra coisa. Hoje em dia ninguém mais se impressiona com literatura. Se eu tivesse escrito o "Herói" nos anos cinqüenta, alguém podia se escandalizar. Hoje ninguém se importa mais, as referências são outras. Hoje, o tal do "DJ" é muito mais importante para essa garotada que o escritor. Não tem mais espaço para os grandes autores, como antes tinha. É um negócio anacrônico esse negócio de escrever. Parece que eu estou em pleno século dezenove!

As figuras do livro são reais? Por exemplo, o Pepê?

São, como disse, "franquesteins". O Pepê existiu de fato, mas nunca teve sexo, nem vontade. Eu queria que o diálogo do conto estivesse na quarta capa do livro. As histórias são todas misturadas. No caso do meu romance, "O Azul do filho morto", é pior, é terrível. Totalmente autobiográfico e exagerado. Meu irmão brigou comigo e se afastou. No conto "Basta um verniz para ser feliz", por exemplo, eu pensei no Amaury Jr. narrando a história. O que quer sempre agradar, o "chato". É uma vida babaca a da classe média alta em São Paulo.

Para encerrar: onde você acha que o Mário Bortolotto acertou mais, e onde ele errou mais?

Na adaptação do "Herói", ele acertou em tudo! Eu tive sorte, achei mesmo ótimo. Não quero nem pôr nem tirar nada. Tudo funciona como um relógio! Só no figurino foi que eu dei palpite. Aquele chinelão Rider do Marcelo (que o Fábio usa).... Se você for na minha casa, vai me encontrar exatamente daquele jeito.

Uma frase, um pensamento de Marcelo Mirisola para encerrar:

Vai rolar uma pipoca? (risos)

Para ir além
Confira toda a programação da mostra: www.cemiteriodeautomoveis.hpg.ig.com.br

Rennata Airoldi
São Paulo, 28/8/2002

 

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