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Sexta-feira, 20/9/2002
Wittgenstein, o fazedor de símiles
Julio Daio Borges

Nestes mais de 50 anos desde sua morte, Wittgenstein não tem desfrutado de um repouso tranqüilo. Longe de ver sua obra satisfatoriamente assimilada, tem tido seu túmulo ocasionalmente revirado em razão de suposições sobre seus atos privados, que pouco ou nada acrescentam à sua obra filosófica. Algo que ele repudiaria já em vida. A saber: sua problemática opção sexual (pelo "amor que não ousa dizer seu nome"); sua excentricidade no trato social (é costume, por exemplo, evocar seu tumultuado encontro com Karl Popper); sua hipotética convivência, na infância, com Adolf Hitler (que, cogita-se, teria desenvolvido as sementes do anti-semitismo; visto que Wittgenstein, além de judeu, era excepcionalmente dotado e rico). Sem a pretensão, no entanto, de querer pôr fim a essas agitações típicas de um mar revolto (o próprio legado do filósofo), talvez seja interessante desviar a atenção para outros aspectos mais elucidativos de sua trajetória.

Wittgenstein nasceu e cresceu no seio do império austro-húngaro, numa Viena anterior à Primeira Guerra Mundial, desfrutando ainda do esplendor que a cidade conhecera até o século XIX. Como membro de uma das famílias mais abastadas da Europa, privou da companhia de figuras luminares como Gustav Klimt e Joahnnes Brahms, graças ao apego dos Wittgenstein à música e às artes. Considerado o menos brilhante entre seus irmãos, o pequeno Ludwig só aprendeu a andar aos quatro anos de idade (episódio que, na maturidade, gostaria de rememorar). Não apresentando nenhuma aptidão artística especial, mas com certa habilidade manual e considerável dom para a mecânica, foi até Berlim e, em seguida, até Manchester estudar engenharia aeronáutica. Lá teve despertado seu interesse pela matemática pura e, aconselhado por Gottlob Frege (autor de Fundamentos da aritmética), rumou para Cambridge, mais especificamente para Trinity College, atrás de um certo lógico, chamado Bertrand Russel (então autor de Principia mathematica). O estudo do que hoje denominamos "ciências exatas" marcaria Wittgenstein para sempre, a ponto de constantemente buscar, em seus escritos, "a mesma honestidade dos manuais técnicos".

Há um farto anedotário a respeito de seu encontro com Bertrand Russell (inclusive alimentado por este último, que tinha, entre as suas especialidades, a de contar histórias sobre filósofos). Analisando, porém, os registros de Russell na época, é visível como aquele acontecimento marcaria ambos indelevelmente: marcaria Russell, que atravessava um momento de aridez intelectual e que vira em Wittgenstein o discípulo que tanto esperara para dar continuidade a seu trabalho; e marcaria Wittgenstein, por, de repente, ter acesso direto a dois dos maiores matemáticos de seu tempo: o próprio Russell e G.E. Moore (autor de Uma defesa do senso comum). Em menos de um ano, por conta de assaltos ao escritório e à mente de Bertrand Russell, nos mais diversos horários, Wittgenstein já havia absorvido tudo o que ele tinha a ensinar sobre lógica e se tornara, sem exagero, mestre de Russell. (Este, inclusive, apresentava-o como "o jovem que daria o próximo grande passo em filosofia".)

Atormentado por dúvidas existências, que lhe ocorreriam de tempos em tempos, Wittgenstein encarou Russell e fez-lhe então a pergunta clássica: "Me diga se sou um completo idiota, por que, se for, pretendo me tornar um aeronatura; e, se não for, pretendo me tornar um filósofo." Aturdido pela indagação inesperada, Russell pediu que, durante as férias, Wittgenstein preparasse um texto filosófico sobre qualquer assunto. De volta às aulas, Russell precisou ler apenas a primeira frase para saber que se tratava de um gênio. "O mais autêntico que já conheci", escreveria posteriormente em suas memórias, "passional, profundo, intenso e dominador". A lua-de-mel entre os dois, no entanto, não duraria para sempre: romperiam a amizade depois da Primeira Guerra e, embora voltassem a se encontrar em Cambridge, suas relações jamais seriam as mesmas. Russell, um ateísta convicto, não suportaria os "arroubos místicos" do Wittgenstein adulto; já o Wittgenstein adulto enojar-se-ia com os livros que Russell escreveria para as massas, parcos em filosofia, mas que lhe renderiam dividendos por toda a vida. Nesses primeiros anos em Cambridge, Wittgenstein ainda travaria contatos importantes com o economista John Maynard Keynes (um amigo que lhe garantiria empregos e indicações, salvando-o inclusive das garras do nazismo).

Sentindo-se sufocado pelo ambiente estéril de Cambridge (sensação também recorrente nos próximos anos), Wittgenstein decidiria se isolar na Noruega para sossegadamente meditar sobre lógica. Construiu então uma cabana junto ao fiorde, onde a única possibilidade de contato humano dependia de atravessar um rio remando num bote (ou de caminhar por longos trechos, durante o inverno, quando o mesmo rio estivesse congelado). É nessa época que se dá seu rompimento com G.E. Moore. Cambridge recusaria a Wittgenstein o certificado de graduação, pois sua tese (desenvolvida com acompanhamento de Moore) carecia de prefácio e de referências bibliográficas, "detalhes estúpidos" que o intrépido filósofo se recusava a dar. Wittgenstein queria aberta uma exceção para si e, apesar dos pacienciosos esforços de Moore para fazê-lo entender os procedimentos necessários, acabou "mandando-o para o inferno". Ao contrário do que ocorreria com Russell, no entanto, suas relações se restabeleceriam novamente, quando do retorno de Wittgenstein a Cambridge, depois da Primeira Guerra e de suas aventuras como professor primário pelo interior da Áustria.

Antes, porém, eclodiria a Primeira Guerra Mundial e Wittgenstein, como patriota fervoroso, se alistaria prontamente e de forma voluntária. Acreditava, naquela altura, que precisava conferir sentido à sua vida, ou então pedir a Deus que lhe tirasse a mesma no front de batalha. Wittgenstein ansiava por uma grande transformação ou então preferia que a morte o levasse, pois continuar vivendo, daquele jeito, seria como viver em vão. Considerava-se indecente e impuro, conforme registram as entradas em seu diário, ao mesmo tempo em que alimentava forte afeição por David Pinsent, um colega de Cambridge por quem havia claramente se apaixonado (viria a descobrir mais tarde). Em sua experiência como soldado raso, na frente russa, mergulharia n'O evangelho explicado de Tolstói (o único exemplar que encontrara numa biblioteca pela qual passara) e afirmaria mais tarde que esse livro havia lhe salvado a alma. Nesse ambiente conceberia a única obra que daria por terminada: o Tractatus logico-philosophicus. Estruturado na forma de proposições numeradas, reveria toda a lógica até então, estabeleceria os limites da linguagem e introduzia uma ética transcendental que não poderia ser dita mas apenas mostrada. Quando a Primeira Guerra se encerrava, Wittgenstein alcançara seu objetivo e trazia consigo o manuscrito que abalaria para sempre os alicerces da filosofia ocidental. Tinha menos de trinta anos.

A aceitação do Tractatus, contudo, não foi, em nenhum momento, fácil. Para começar, as quatro pessoas que, Wittgenstein acreditava, estavam aptas a entender seu manuscrito fracassaram completamente na compreensão de seu trabalho. David Pinsent, a paixão platônica nutrida durante a Guerra, havia morrido em combate (é para ele que vai a dedicatória); Paul Engelmann, uma amizade recente, partilhava das mesmas convicções religiosas de Wittgenstein, mas não tinha suficiente bagagem filosófica; G. Frege (o mesmo que aconselhara sua ida a Cambridge) implicaria com o uso de certas palavras e não passaria da primeira página; já Bertrand Russell, embora se esforçasse para compreendê-lo (marcando inclusive encontros pessoais com Wittgenstein, para que discutissem cada frase), escreveu um prefácio totalmente equivocado (aos olhos do autor do Tractatus) que, no entanto, permaneceu inalterado, pois viabilizaria sua publicação na Europa do pós-Guerra. O livro viria à luz em periódicos independentes, em sua versão para o inglês, e no que Wittgenstein classificaria como "edições-pirata", até conseguir atingir uma forma satisfatória. Mas Wittgenstein não agüentaria esperar tanto e, tendo acreditado ter resolvido todos os problemas da filosofia, isolou-se em Trattenbach.

Procurava para si uma ocupação mais edificante e pôs-se a dar aulas de álgebra num pequeno vilarejo ao sul de Viena. Para um professor, tinha, como sempre, métodos pouco ortodoxos: para explicar como funcionava um motor, inventava uma máquina a vapor; para infundir noções de anatomia, dissecava o esqueleto de um gato; e, para falar de astronomia, punha seus alunos a observar o céu durante a noite. Como mais para frente, em Cambridge, apegar-se-ia aos pupilos mais habilidosos e proporia a eles cursos avançados (ainda que no futuro esses ensinamentos jamais lhes fossem requisitados). Os pais das crianças viam Wittgenstein com desconfiança, pois seus modos e sua origem contrastavam barbaramente com os dos demais habitantes da região. Além do mais, os maus-tratos destinados aos alunos mais atrasados (como puxões de cabelo e tapas na orelha), foram conferindo ao professor-forasteiro má fama. A solidão de não ter absolutamente com quem conversar foi mais um argumento para convencer Wittgenstein de um retorno à civilização. Antes, contudo, deixaria sua marca: produziria um dicionário para uso prático em escolas similares. Não obstante, não rumaria direto para Cambridge: antes passaria uma temporada num mosteiro, praticando jardinagem; em seguida, projetaria e construiria uma casa para a irmã Gretl (exercitando as influências que recebera na juventude do arquiteto Adolf Loss); só então, depois de uma breve passagem pela Noruega, um noivado rompido e um encontro com Piero Straffa (economista e companheiro de Antonio Gramsci), Wittgenstein se convenceria de que havia erros no Tractatus e que, portanto, sua contribuição em filosofia não havia se encerrado.

O mesmo ar jovial e o excessivo despojamento de seus trajes continuariam a chocar os colegas de Cambridge, na volta, logo no desembarcar do trem, na estação. Os conferencistas do Trinity College simplesmente não podiam acreditar que aquele sujeito vestindo farrapos, a fulminar-lhes com objeções, sentado no chão, pudesse ser a mesma celebridade filosófica que se convencionara chamar por Ludwig Wittgenstein. Começava a era em que os lendários cursos do professor Wittgenstein seriam ministrados para platéias seletas. Como tinha horror a salas cheias, quando suas aulas de "Filosofia", "Filosofia da Matemática" ou "Filosofia da Psicologia" eram muito procuradas, costumava selecionar cinco ou seis melhores alunos para ditar-lhes suas reflexões - as quais eram anotadas, convertidas em apostilas e distribuídas para o resto da turma. Assim surgiram, por exemplo, os Cadernos azul e marrom (apenas porque suas capas tinham as respectivas cores). Começou também o culto a Wittgenstein. A influência que exercia sobre seus alunos era tamanha que logrou convencer muitos a abandonar a idéia de seguir uma carreira acadêmico-filosófica, encaminhando alguns para a medicina, outros para trabalhos francamente braçais (que Wittgenstein acreditava mais dignos do que viver vegetando na universidade). Desse tempo data sua ligação com Francis Skinner, sua primeira paixão correspondida, o único amor sobre o qual daria detalhes íntimos no diário. Adepto dos preceitos de Otto Weininger (autor de Sexo e caráter), Wittgenstein optaria, no entanto, por afastar-se do ser amado, encaminhando Skinner para um emprego numa fábrica e partindo uma terceira vez para Noruega a fim de concluir um segundo livro (jamais acabado): as Investigações Filosóficas.

Wittgenstein se ressentia de que seus resultados em filosofia estivessem sendo divulgados sem o devido crédito (notadamente por Friedrich Waismann que preparava Lógica, Gramática e Filosofia ao seu lado, mas em que o autor do Tractatus deixara subitamente de confiar). Em parceria, Wittgenstein ainda desenvolveria outros trabalhos notáveis, por exemplo, com Frank Ramsey; juntos tentariam derrubar os alicerces fixados por Russell e Whitehead, nos Principia mathematica (embora partissem justamente de lá para provar suas hipóteses). Não fosse a morte precoce de Ramsey, aos 26 anos, teriam provavelmente concluído algo a quatro mãos. Com Skinner, contudo, Wittgenstein não mantinha uma relação entre iguais, já que Francis lhe devotara a vida desde o primeiro encontro em Cambridge. Mesmo assim, fizeram importantes avanços nos jogos de linguagem, através dos quais Wittgenstein provaria - ao contrário de Sócrates - que perguntas como "o que é a vida?", "o que são os números?", "o que é o belo?" não tinham o menor sentido, eram meras armadilhas da linguagem, às quais não correspondiam quaisquer respostas. Ainda que de volta à solidão reconfortante da Noruega, Wittgenstein não conseguiu dar forma final às suas idéias - atacado que estava pelas saudades de Skinner e interrompido, mais uma vez, por uma Guerra Mundial, a Segunda. O máximo que conseguiu fazer foi escrever uma "confissão". Tratou de enviar uma cópia para cada pessoa mais próxima, procurando, em seguida, aqueles seres humanos a quem acreditava ter feito algum mal, para, na seqüência, retratar-se e pedir perdão. Quando perguntado se queria, com isso, alcançar a perfeição, Wittgenstein trovejou: "- Mas é claro que eu quero!"

Com a eclosão da Segunda Guerra, não viu mais sentido em fazer filosofia, dada a magnitude do conflito que se instalava. Para não contrariar sua tradição idiossincrática, Wittgenstein quis realizar algo de útil e meteu-se a fazer faxina no Guy's Hospital, de Londres. Pediu sigilo absoluto, pois não queria que soubessem quem ele era, procurando conviver ali, entre as pessoas, como um igual. Já na casa dos 50 anos, obviamente, não suportou o serviço pesado, ao mesmo tempo em que teve sua perspicácia descoberta pelos laboratoristas que o convidaram para preparar o soro que socorria as vítimas dos bombardeios. O ungüento nunca fora antes tão bem elaborado e Wittgenstein, com suas observações, era mais uma vez promovido: agora ajudaria no tratamento psicológico de doentes transtornados pela realidade da Guerra. A essa altura, já desenvolvera um interesse crescente por Freud ("enfim um psicólogo que tem algo a nos dizer!") e, no diário, interpretava seus próprios sonhos. Além da confecção de um documento sobre as pesquisas empreendidas, junto aos médicos, Wittgenstein tornou-se especialista em interromper as folgas dos funcionários pois, não importando em que situação, só conseguia falar de trabalho. Refrescava sua mente com uma "ducha" de faroestes e musicais de cinema, histórias de detetive (importadas dos Estados Unidos), e repertório erudito, que costumava assobiar (corrigindo também aqueles que o faziam erroneamente). Mais tarde, já perto do fim, lamentaria que, em suas obras, não houvesse registrado o que havia significado para ele a música.

Em seus últimos anos, Wittgenstein, concentrou-se em tentar - de uma vez por todas - finalizar as Investigações Filosóficas. Não foi, no entanto, capaz. Admitindo isso abertamente, tratou de lê-las e explicá-las, nos mínimos detalhes, para três discípulos eleitos por ele (Norman Malcolm, Georg Henrik von Wright e Elizabeth Anscombe), de forma que estes pudessem fazer uma edição póstuma do trabalho e, se possível, dar-lhe continuidade. Wittgenstein desiludira-se com o mundo do Pós-Guerra, dominado pela ciência e pela indústria. Concluídas as Investigações (ou quase), abandonou sua cátedra em Cambridge, passando temporadas, mais uma vez, na Noruega, na Inglaterra, na Irlanda e, pela primeira vez, nos Estados Unidos. Causou frisson, entre os estudantes da Cornell University, ao adentrar numa sala de aula. Quando teve o nome anunciado, provocou o mesmíssimo espanto que um Platão. Embora dissesse que nos últimos tempos vinha fazendo filosofia como uma velha que, ora perde os óculos, ora perde as chaves, Wittgenstein fez símiles até dois dias antes de morrer - e, com eles, alcançou a eternidade.

Para ir além







Julio Daio Borges
São Paulo, 20/9/2002

 

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