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Quinta-feira, 5/9/2002
Invasão literária nos cinemas
Lucas Rodrigues Pires

O cinema brasileiro da retomada é, fundamentalmente, baseado em literatura. Pode parecer exagero afirmar isso, mas a maioria dos filmes brasileiros que chegaram e chegam aos cinemas são adaptações de alguma forma de manifestação literária – e aqui incluo a dramaturgia nacional. Claro que há uma tradição de bons livros serem transpostos às telas, mas nunca se viu tanta “parceria” entre as duas artes como se encontra na atual fase do cinema nacional.

Uma das características da produção dos anos 90 é sua diversidade. Têm-se realizado filmes que tramitam nos mais diversos gêneros cinematográficos: comédias, comédias românticas, filmes históricos e biográficos, thrillers de perseguição, outros que abordam as mazelas da realidade brasileira e mesmo obras que resgatam o sertão e o cangaço nordestinos. Grande parte deles bebem em outras fontes artísticas, cuja força maior está na palavra – casos da literatura e do teatro. Clássicos consagrados da literatura, como Machado de Assis (Memórias Póstumas), Lima Barreto (Triste Fim de Policarpo Quaresma) e Eça de Queirós (Amor & Cia.), e novos clássicos – Rubem Fonseca (Bufo & Spallanzani) e Raduan Nassar (Um Copo de Cólera e Lavoura Arcaica), por exemplo – receberam adaptações cinematográficas. O Xangô de Baker Street, dirigido por Miguel Faria Jr., foi adaptado da história de Jô Soares, livro que vendeu mais de 500 mil exemplares desde seu lançamento; Jorge Amado pôde ver Sônia Braga interpretar o papel-título em Tieta do Agreste no filme dirigido por Cacá Diegues. Até Chico Buarque, cuja obra literária se mostrou de difícil adaptação cinematográfica, recebeu uma versão digna dos cinemas – Estorvo, pelas mãos de Ruy Guerra, e Benjamin está em fase de finalização em projeto de Monique Gardemberg.

Os exemplos surgem aos montes quando buscamos no acervo de filmes dos últimos anos. Para ficar somente de 2001 a hoje, temos oito adaptações no ano passado e, até início de agosto, foram sete com outras cinco programadas para estrear. O interessante nisso é que essas adaptações atraem público mais significativo. A Partilha (baseado em peça de Miguel Falabella), Bicho de Sete Cabeças (sobre livro de Austregélido Carrano), Lavoura Arcaica (de Raduan Nassar, dirigido por Luiz Fernando Carvalho), Domésticas, O Filme (peça de Renata Mello), Abril Despedaçado (de Walter Salles, adaptado de Ismail Kadaré) e O Invasor (em conto de Marçal Aquino) foram os principais. Cidade de Deus estreou sexta-feira passada com pompa de campeão de bilheteria...

A que se deve essa invasão literária nos cinemas? Por que cada vez mais livros são adaptados para as telas?

1. Uma das respostas poderia ser a carência de instrução/educação entre a população, reflexo imediato do desleixo da sociedade frente ao cinema e a tudo que se ligue à cultura brasileira, o que estaria minando o setor anteriormente voltado à criação no cinema e gerando uma migração desses homens de cinema para outros ramos, como o jornalismo, mais atrativos financeiramente e como maior reconhecimento de classe.

2. Outra possibilidade estaria na propensão a maior sucesso daquilo que já existe e já possui “eco” com o público. Nessa categoria poderíamos incluir a maioria de filmes adaptados de texto teatral que nascem após o sucesso deste nos palcos. Com o respaldo do público, o caminho para se captar recursos e fechar com uma distribuidora grande se torna menos pedregoso. Isso não significa que haverá o mesmo sucesso nos cinemas, mas a fórmula se repete e pode garantir menor risco que um investimento em algo considerado ainda “em aberto”. Ainda aqui poderíamos inserir o fato de haver medo e insegurança quanto a mudanças. Poucos diretores e produtores investiriam em algo que fosse contra a corrente atual – e esta está voltada principalmente a produtos (sim, hoje o cinema é um produto como outro qualquer) com atores globais e textos cômicos e vazios ideológica e politicamente. Mesmo um cara como Luiz Fernando Carvalho, considerado um oásis em meio ao lixo da televisão brasileira, teve que se render aos atores de nome para criar Lavoura Arcaica. Como na política, o pensamento de que há como piorar ou não se dar bem com uma mudança nos faz refém de uma situação propícia ao atrofiamento econômico, cultural e intelectual.

3. Outra posição seria a mais simples: adaptar textos já prontos é mais fácil que criar. Além disso, o diretor não teria a função de criar, mas sim de transformar o universo das palavras em imagens. Com esse argumento estaríamos excluindo o papel do diretor-autor, e definindo as funções de cada um sem interferências de um no “trabalho” do outro.

Podemos conjecturar várias razões para haver muitas adaptações nos cinema brasileiro atual, mas nenhuma as esgota por inteiro, menos ainda suas conseqüências. Mas, com a qualidade de certos textos, o nosso cinema ganha força nesse quesito que falta aos filmes comerciais americanos – que dominam o mercado exibidor nacional. Frente às produções superficiais de Hollywood, que aterrissam por aqui e conquistam milhões de espectadores, certa parcela do cinema brasileiro busca copiar essa fórmula – para alguns, vencedora, dependendo do ponto de vista – e outra procura no universo da ficção literária criar mecanismos de se fazer arte e mostrar um caminho alternativo. Nem todo livro/peça de teatro nacional adaptado aos cinemas rende bons frutos, mas a porcentagem de acertos está acima da média, e só isso já é louvável para que aplaudamos seus realizadores.

Lucas Rodrigues Pires
São Paulo, 5/9/2002

 

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