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Segunda-feira, 9/9/2002 Festa na floresta Eduardo Carvalho A discussão é esta: os alunos do curso de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo estão com dificuldade para definir um tema para a próxima festa da escola. Para um grupo de pessoas psicologicamente equilibrado, o motivo suficiente de uma festa é reunir pessoas para conversar, comer, ouvir música, e até, para os mais animados, dançar. É deselegante, mesmo para os eventos de maior informalidade, um título que escape dos tradicionais: Festa do Pijama, do Chapéu, do Farol, do Brega, do Cabide, etc. Mas os futuros historiadores ainda não perceberam isso. Querem produzir uma festa inédita. Uma festa que, como seus discursos políticos, escape do conformismo padronizado. E não há momento mais apropriado para destacar essa originalidade do que a data de celebração de um ano dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Os organizadores querem promover uma festa bombástica. Acredite. Isso não é brincadeira. Talvez nem reflita a opinião da maioria dos estudantes do curso; não sei, mas desconfio que sim. O que sei é que recebi por e-mail, dias atrás, as seguintes mensagens, que circularam pelo e-group do Centro Acadêmico de História. Mudei, aleatoriamente, os nomes dos remetentes e destinatários, por questão de educação, mas mantive os deslizes de digitação e erros de português, para preservar o clima: "Para Polnopote e demais colegas Como e porque uma festa com o nome do Osama?!?!? Uma coisa é discutir o 11 de setembro e suas consequÊncias, a saber, a intensificação da ofensiva de Bush no plano militar(Palestina, e ameaça de invasão ao Iraque) e no plano econômico(ALCA, acordos com o FMI, etc...)Todavia, como "festejar", mesmo que em tom de brincadeira o Bin Laden? E não se trata apenas dos milhares de inocentes mortos. Trata-se também do método do terrorismo, que só pode servir de combustível para a máquina de repressão do imperialismo. Trata-se da trajetória política do próprio Bin Laden, que no passado foi agente da CIA quando da invasão soviética no Afeganistão. Sinceramente , o que há para festejar? Não sei em que contexto a festa está sendo organizada, mas sugeriria a mudança de tema. Ex: Festa contra Bush e imperialismo, Festa contra a invasão do Iraque, Festa contra a ALCA etc... Temas importantes não faltam. Agora , Osama , não dá!!! Ass: Maocomchulé" Polnopote foi provavelmente o estudante - ou, se preferir, o freqüentador daquele campus disfarçado de rodoviária, a FFLCH - que sugeriu como título para a festa o nome de Osama Bin Laden. Muito criativo, realmente. Eu nunca tinha pensado nisso. Mas repare: Maocomchulé não gostou. Ele prefere manter a tonalidade inconformista, mas, em vez de dançar reggae elogiando Bin Laden, dançar rap em uma festa denominada "Festa contra Bush e o imperialismo". Preciso admitir: isso faz muita diferença. Tanta diferença que Satamrusseim, que participa da mesma lista de discussão, ficou bravo, e acusou Maocomchulé do maior insulto que uma pessoa "consciente" pode receber: ele estaria baseando suas opiniões no senso comum. Que horror, Ma - assim não dá. O jornal do Partido Comunista circula gratuitamente aqui na nossa faculdade - você não pode ficar por fora. Veja só: "Caro Maoconchulé... acho que vc esta sendo simplista demais e baseando suas opiniões no senso comum.É claro que ninguem está festejando o contexto em que ocorreu os atentados, mas sim o significado que isso representa, ou seja, abalou-se a hegemonia norte americana. Muitas e muitas pessoas morrem todos os dias em decorrencia dos temas que vc sugeriu tambem, a questão é que um não é necessariamnete mais nobre ou justo que outro. A festa não tem a intenção de tratar de juizos de valores e sim de levantar a questão em torno de que mais pessoas estão contra os supostos donos do mundo e que eles não não senhores absolutos, ao contrario, os atentados só demonstraram sua fragilidade.E isso, na minha opinião deve ser sim comemorado e principalmente não pode ser esquecido. A vida de 5 mil (ou sei la quantos americanos) não vale mais do que os milhares que morrem todos os dias com o consentimento desses mesmos civis.E sendo também simplista, para cada ação corresponde uma reação, e acho que os atentados não vingaram nem um 1/3 de tudo o que somos obrigados a engolir. Sem maniqueismos, valeu Osama! Ass: Satamrrusseim" Tudo bem. Parece piada. E das difíceis de entender, nesse estilo confuso e raciocínio torto. Mas algumas risadas são incontroláveis: "o significado que isso representa"; "É claro que ninguem está festejando o contexto em que ocorreu os atentados (...) E isso, na minha opinião deve ser sim comemorado"; "A festa não tem a intenção de tratar de juizos de valores. (...) A vida de 5 mil americanos não vale mais do que os milhares que morrem todos os dias com o consentimento desses mesmos civis". E a enigmática conclusão: "Sem maniqueismos, valeu Osama!". Não vou comentar em minúcias o estilo nem o conteúdo da carta. "We assume a reasonable degree of enlightenment on the part of our readers", estava impresso no primeiro exemplar da revista New Yorker. Eu também. Mas a palavra maniqueísmo aí, a quem nunca freqüentou uma aula na FFLCH, pode parecer inapropriada. É, porém, compreensível a quem, como eu, já se submeteu voluntariamente, mesmo que por alguns meses, à terrível tortura de freqüentar aquela faculdade. As peculiares relações pessoais entre os estudantes de História exigem um vocabulário adaptado às suas conveniências e afetações. Para isso, além das quatro maneiras que eles desenvolveram para iniciar frases - "Eu gostaria de propor uma reflexão", "... de colocar uma questão", "...de sugerir um tópico", "... de expor meu ponto de vista" - eles também conseguiram decorar, sem entender direito o significado, uma meia dúzia de palavras feias - e maniqueísmo é uma delas. Não me pergunte quais são as outras cinco - eu já perdi o meu manual. Mas não a memória. Eu me lembro, como se fosse hoje, do meu primeiro dia de aula. Aula Magna com Marilena Chauí, às 20 horas, no anfiteatro. Cheguei às 21. A sala de 400 lugares estava absolutamente lotada, com gente espremida nas cadeiras e sentada no chão. Um bafo quente saía pela porta, em que, na ponta dos pés, mais umas 30 pessoas se acotovelavam para assistir à palestra - e eu entre elas, recebendo as cotoveladas. A cena era imperdível: Marilena Chauí, com aquele charme envolvente (representado pelo broche que ela carregava na camisa: oPTei!) e aquela verve hipnótica, lia, de cabeça baixa, exatamente o mesmo texto que, no domingo anterior, ela havia publicado no caderno Mais! da Folha. Não sei quem percebeu a coincidência, mas eu já havia lido aquele artigo, por curiosidade; e não entendi nada. Duvido que fosse para alguém entender, e que alguém, na sala inteira, estivesse prestando atenção no texto. Eu reparava na platéia. Esparramado na carteira, um cara de camiseta rasgada dormia profundamente, com a boina cobrindo seus olhos. E não era o único. O texto era interminável e ninguém agüentava mais. Quando acabou, a platéia precisou de quase um minuto para perceber que estava livre. Se o auditório estivesse lotado de corinthianos e fosse gol do Corinthians, o barulho não ia ser maior. As pessoas não apenas aplaudiam: gritavam. E eu reparei novamente no dorminhoco de boina: era o mais entusiasmado da turma, berrando e pulando de alegria. Patético. É curiosa a relação que existe, especialmente entre jovens, da ignorância com a atividade política. Depois de uma aula interessante (não, os professores não são sempre do mesmo nível dos alunos), fui conversar com o professor. Antes de mim, uma menina, com cara de perdida, tirava uma dúvida: "Professor, eu não estou entendendo nada da sua aula. É muito complicado esse negócio de misturar literatura com história, eu nunca li esses livros, e fico assustada quando alguém cita Platão, Kant, Hobbes quando faz uma pergunta." Detalhe: a aula não tinha nada de difícil. Pelo modo como falava, era óbvio que a menina era quase analfabeta. Pois bem - um mês depois, quem é que vem à minha classe explicar por que devemos todos nós, alunos, entrar em greve e lutar contra a Alca? A mesma menina. É assustador que alguém que não tenha conseguido resolver sequer seus problemas pessoais de educação pretenda "transformar todo o sistema educacional brasileiro". Onde estamos? No Brasil, acho. O país em que a "soberania nacional" é defendida em baladas ao som de axé e regadas a pinga . Em que alguém incapaz de empregar uma vírgula adequadamente pretende "conscientizar o povo alienado". Em que ainda é bonito tratar amigos como "camarada". Em que, se você tentar escrever difícil, vai ser mais respeitado do que se comunicar sua idéia com precisão. Em que os futuros historiadores são, com mais de 20 anos de idade, analfabetos funcionais e alucinados incorrigíveis. Alguma coisa deve estar errada. Talvez este não seja o meu país - e essas manifestações de imbecilidade aguda e ódio gratuito sejam apenas localizadas. Localizadas em uma tribo distante, de costumes bárbaros e hábitos excêntricos, isolada, do resto do mundo, no meio de uma floresta perdida. Onde eles podem dar as mãos, fazer uma ciranda, rodar e dançar, com a imagem de Bin Laden no centro - que ninguém, no mundo civilizado, vai perceber a mínima diferença. Eduardo Carvalho |
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