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Segunda-feira, 16/9/2002
Cegueiras dimensionais
Marcelo Barbão

Será inevitável que todos os visionários, que conseguem enxergar, mesmo por instantes fugazes, a verdadeira essência de nosso mundo, acabem mortos ou na prisão? Será que sempre trataremos esses homens ou mulheres como insanos, incapazes de conviver em harmonia com a nossa sociedade? Quem são os loucos, nós ou eles?

Desde o início do pensamento filosófico ocidental, o problema dos limites da capacidade de conhecimento do ser humano está colocado. É impossível esquecer da Alegoria da Caverna de Platão. Será que este é o verdadeiro mundo ou nossos sentidos não são capazes de apreender toda a realidade que existe?

Segundo Edwin A. Abbott, teólogo e acadêmico prestigiado na Inglaterra vitoriana, os sentidos são como uma barreira que impede a visão do que há além deste mundo. E defende este ponto de vista fazendo uma alegoria geométrica. Em Planolândia, Abbott descreve uma sociedade bidimensional, com triângulos, quadrados, polígonos e círculos convivendo numa estrutura fechada e autoritária.

Neste mundo bidimensional, cada figura tem um papel a cumprir e o avanço na sociedade vai acontecendo através de herança. É como um sistema de castas, mas com a possibilidade de "subir na vida". E todo o status de Planolândia gira em torno dos graus. Quanto menor os graus dos lados de uma figura, menor sua importância na escala social.

Os triângulos isósceles, com seus ângulos pequenos e lados "pontudos" formam o exército e a camada mais baixa da sociedade. Os triângulos eqüiláteros são comerciantes, os quadrados são os profissionais liberais, os polígonos são os acadêmicos e, finalmente, no topo, temos os círculos, que misturam poder político e religioso.

É claro que isso só funciona com os homens, as mulheres são completamente subordinadas. Em Planolândia, estas são somente linhas, ou seja, não possuem ângulos e, ainda pior, são quase unidimensionais. Além disso, como são pouco visíveis para os outros cidadãos (imaginem uma mulher de "frente", ela será apenas um ponto), são obrigadas a andar falando em voz alta um brado de paz. Por que isso? O formato das mulheres possibilita que elas sejam perigosas armas capazes de matar facilmente qualquer outra figura.

Sexismo típico da era vitoriana? Muito pelo contrário. Abbott é famoso exatamente por suas críticas à sociedade machista da Inglaterra do século XIX. Ele foi um dos primeiros a defender a reforma educacional para que as mulheres tivessem acesso aos estudos. Portanto, a ironia é uma arma de Abbott para denunciar sua época.

Uma das principais preocupações dos habitantes de Planolândia é o reconhecimento dos outros moradores. Afinal, não podemos esquecer que estamos em um mundo bidimensional, ou seja, quando um quadrado olha para um triângulo, os dois estando no mesmo plano, só poderá ver uma linha. Não é possível confiar no reconhecimento verbal já que as vozes podem ser dissimuladas, portanto, o toque tornou-se o principal meio de reconhecimento. A percepção dos ângulos que, com o tempo, podem ser calculados mentalmente com incrível rapidez (afinal, esta matéria já é ensinada na escola desde a primeira infância), é o que permite a convivência entre os diferentes estratos sociais.

Tudo caminhava razoavelmente tranqüilo para o quadrado narrador desta visita a Planolândia, quando ele foi levado a conhecer outros mundos e outras realidades. Primeiro, através de um sonho, onde visualizou o mundo unidimensional. Em Linhalândia, ele começa a perceber as dificuldades de compreensão de dimensões que estão além do nosso campo de conhecimento. Por mais que tente explicar às linhas daquele mundo o que é altura, ninguém consegue entender. Elas, simplesmente (não podemos deixar de mencionar que as mulheres neste mundo são pontos), não conseguem enxergar a segunda dimensão.

Este sonho do quadrado é premonitório. Poucos dias depois, uma esfera penetra em Planolândia. Sua missão é demonstrar que existe a terceira dimensão. Da mesma forma, a esfera tentou, através de exemplos e argumentações, mostrar que Planolândia era um mundo restrito. De onde ele vinha, Espaçolândia, era possível ver todo universo bidimensional e conhecer tudo o que se passava por ali.

Mas, como em Linhalândia, meras argumentações não puderam convencer o pobre quadrado. E, por isso, foi necessária uma experiência direta. O quadrado foi levado a Espaçolândia e conseguiu perceber a dimensão espacial. Isto pouco adiantou na sua volta porque, apesar de conhecer a verdade, ele não conseguiu convencer ninguém em Planolândia da veracidade da terceira dimensão.

Abbott consegue, usando um pequeno livro, colocar grandes questionamentos que continuam em voga nos estudos epistemológicos até hoje: como se conhece a realidade? Como se explica esta realidade? Como usamos os signos para exprimir conceitos abstratos (fato muito bem traduzido no bordão "para cima" que o quadrado tenta usar para explicar o que é a terceira dimensão - o problema é que o "para cima" significaria "sair fora" de Planolândia)?

Abbott, como bom teólogo, também apresenta sua "solução" para o caso. É através da experiência (mística?) além dos seus sentidos que o quadrado conseguiu entender a realidade espacial. Usando da razão e da ciência, o autor consegue mostrar uma visão mística e extra-sensorial do mundo.

Um pequeno e instigante livro que passou esquecido por quase um século, mas importante para nós que ainda estamos descobrir se existem outras dimensões.

Para ir além



Planolândia - um romance de muitas dimensões
Edwin A. Abbott
Conrad

Marcelo Barbão
São Paulo, 16/9/2002

 

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