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Quinta-feira, 19/9/2002 As Esquetes de Nova Orleans, de Willian Faulkner Ricardo de Mattos "Louvado sejais, meu Senhor, pela Irmã nossa Morte corporal, Da qual nenhum homem vivente pode escapar ". (S. Francisco de Assis ― O Cântico das Criaturas) Lançada em julho deste ano a reunião de contos de Willian Faulkner (1.897/1.962) sob o título Esquetes de Nova Orleans. São dezassete contos escritos entre janeiro e setembro de 1.925, quando o escritor contava 28 anos de idade, num período passado em Nova Orleans antes de seu primeiro embarque para a Europa. Na verdade são dezasseis contos e o primeiro título da série, "Nova Orleans", nada mais é além de uma "sub-reunião" de minicontos, onze textos com uma média de três parágrafos cada. Com estas narrativas publicadas todas em jornal e reunidos na década de cinquenta por seu principal crítico ― Carvel Collins ― temos o ingresso do escritor na prosa. Antes das Esquetes, publicara em 1.924 O Fauno de Mármore, livrete de poesia. Esquete vem do inglês Sketch, termo ligado às artes, significando esboço, rascunho, projecto. O nome foi dado por Collins, e considerando ter sido Faulkner estudante de pintura, é um título no todo apropriado à reunião. Continuando a manter o paralelo entre os contos e minicontos das Esquetes de Nova Orleans com as artes plásticas, podemos dizer ser o primeiro conjunto de desenhos e gravuras independentes de alguém que já possui Goya e Rembrandt em seu curriculum. E muito bem estudados. Temos nas Esquetes um Faulkner iniciante, mas já promissor, e hoje testemunhamos o cumprimento desta promessa. Uma última insistência no paralelo: entre os minicontos sob a rubrica "Nova Orleans", encontramos algumas peças desenvolvidas nos contos constantes deste mesmo volume. Exemplo disso é o miniconto O Sapateiro (pág. 43) extensamente desenvolvido em um conto de mesmo nome (aqui, repare-se, o autor descreva a Toscana sem ainda conhecê-la). Esboço e desenho definitivo, tema e desenvolvimento se quisermos avançar pela música. Frankie e Johnny e O Garoto Aprende talvez tenham também esta mesma ligação. Faulkner envolveu-se com a pintura, mas não tenho notícia do motivo pelo qual a abandonou. Talvez tenha descoberto a falta de vocação, se considerarmos confessional o trecho encontrado na página 108 do volume: "Spratling, cuja mão, ao contrário da minha (ai de mim!), se afeiçoou a um pincel, tornou-se então discursivo sobre os modos de transferir luz para as telas". Spratling era um pintor, amigo pessoal do escritor e reaparece em Episódio. Não se pode excluir a possibilidade da Literatura ter falado mais alto. A julgar por este trabalho inicial, Faulkner poderia ser muito mais popular. Já foi bem conhecido no Brasil, na década de cinquenta principalmente, mas tudo não passou de modismo. É um tratamento imerecido, dada a qualidade da obra. As Esquetes são peças de juventude, preparatórias, equivalentes ao Machado de Assis de A Mão e a Luva e de Ressurreição. Evidente que não comparo a obra de Machado de Assis e a de Faulkner, apenas quero realçar o carácter estreante do segundo. Temos aqui contos com humor (não de humor) mesmo seja trágico o suporte, como em Pôr do Sol. Fora as Esquetes, encontrei nas livrarias virtuais a tradução de outros livros (Enquanto Agonizo, O Intruso, O Povoado, Os Invencidos), mas não me lembro de ter lido sobre eles na imprensa. Luz em Agosto, Santuário, e sua obra prima, O Som e A Fúria, poderiam seguir-se às Esquetes. No geral, predominam a informalidade e a leveza. O jovem Faulkner ao começar a construir sua obra revela conteúdo, resultando em passos iniciais firmes, sérios e bem dispostos. Os diálogos demonstram preocupação com o falado, com o coloquial, e se por vezes exagera (Pô!), é para manter-se fiel à realidade. Contudo, ele sabe quando parar. Sua virtude está em recorrer ao coloquial, mas não ao fácil, ao vulgar. Vez ou outra somos surpreendidos por referências inesperadas. Encabeça o presente texto um excerto do Cântico das Criaturas, de São Francisco de Assis. Qual a ligação entre eles? O conto O Garoto Aprende (pág. 169) termina com a emboscada e morte do protagonista, aprendiz de gangster. Agonizando, o rapaz tenta ver se quem está ao seu lado é a moça que acabara de conquistar: " ― Mary? Disse Johnny experimentando. ― Irmãzinha Morte, corrigiu a luminosa, pegando-o pela mão". Surpreendente. E se entendi direito, até o Evangelho, segundo São Mateus, forneceu inspiração para O Reino de Deus (pág. 119). Narra-se neste conto a confusão de dois contrabandistas e um alienado mental no descarregar de mercadoria. O alienado, irmão de um deles, é agredido pelo outro na pressa da descarga. Tendo quebrada a flor que segurava ― enquanto admirava-a permanecia quieto ―, começa a gritar, fazendo os contrabandistas brigarem entre si e surgir a polícia. O título do conto remete-nos ao Sermão da Montanha, onde encontramos o seguinte trecho: "Com teu adversário mostra-te conciliador, enquanto caminhardes juntos, para não acontecer que te entregue ao juiz e este à guarda e te mandem para a prisão. Em verdade te digo: Não sairás de lá até que pague o último centavo". Na polifonia do presente opúsculo, podemos ainda destacar duas vozes opostas. A primeira, no conto Terra Natal (pág. 75) trazendo-nos o monólogo interior de um dinamitador, desencadeado pela hesitação em participar de um crime. Quer envolver-se no crime por causa do dinheiro ("O dinheiro é tudo"), e refuta os raciocínios por si mesmo apresentados: "Sua crença é consoladora, para que se morra com ela, porém não estou interessado na morte: é viver que eu quero; e a vida é mais do que cama e comida". Apesar desta insatisfação do espírito o personagem desiste da cumplicidade ao ouvir uma música evocar acentuadamente sua terra natal, o interior da França, mas notamos ser alguém infeliz com o pouco que tem. Aqui um personagem infeliz por ter pouco, e o conto Fora de Nazaré apresenta-nos um indivíduo feliz mesmo nada possuindo, sequer Destino: "Eu não tenho destino. Por que razão iria me apressar?" Nada de trágico, nada de existencial na descrição do caminho percorrido por ele do interior a um centro urbano maior. A despreocupação do rapaz talvez seja característica do próprio Faulkner, segundo informado por Collins no prefácio. "A humanidade nunca é tão complexa quanto gostaríamos de acreditar que nós mesmos somos". Nas Esquetes, Faulkner descreve tipos simples, mas sem simplismo ou pieguismo. E não é difícil encontrar quem afirme estar nas Esquetes a delimitação de tipos e locais constantes das obras futuras. O Mentiroso, por exemplo, seria o inaugurador dos tipos rurais. Pôs no papel o colhido na observação das pessoas, e elaborou sua ficção como se extraindo o que pôde dos observados. Se Balzac, de quem se dizia herdeiro, descreve a nobreza francesa anterior (melhor dizendo: sobrevivente) e posterior à revolução, a burguesia ascendente, os literatos, etc., Faulkner volta-se aos marinheiros, jóqueis, contrabandistas e escravos fugidos, mas ambos com o mesmo apuro na observação, e com atenção ao meio frequentado. Quem quiser começar a conhecer a obra faulkneriana, pode satisfatoriamente começar por aqui. Para ir além Ricardo de Mattos |
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