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Terça-feira, 24/9/2002 Apesar da democracia Evandro Ferreira Se o ser humano em geral já não anda muito dado ao uso proveitoso de suas enormes faculdades intelectivas, não seria de se esperar que fosse diferente em meio ao caótico burburinho eleitoral em que a democracia nos joga a todos periodicamente. Em meio ao círculo democrático de procedimentos e eventos que determinam sua mentalidade ou "campo de possibilidades" o cidadão, envolvido no processo de voto e posterior reivindicação das promessas de campanha, torna-se incapaz de enxergar que toda a sua aparente liberdade consiste apenas nisso: votar e reivindicar. A pergunta que fica suspensa é a seguinte. Reivindicar é verbo intransitivo? Se a resposta for positiva, temos o fim da história fukuyâmico-hegeliano e seremos todos redimidos de nossos pecados pelo abençoado governo da maioria, mais conhecido, ou melhor, não-conhecido como Estado, o qual, nos garantem os neocomunistas, após o seu inchaço infinito a proporções mega hiper ultra reguladoras, retirar-se-á humildemente, configurando-se então o fim da burocracia e o paraíso na Terra. Se a resposta for negativa, então devemos ser capazes de admitir que o objeto indireto da frase "reivindicar ao Estado" é uma entidade concreta, secular e, como tal, sujeita a ser questionada e até - pasmem! - a se corromper, tanto no sentido ético, quanto no sentido filosófico-natural do termo, i.e., a perecer. A falácia socialista se situa na primeira das duas alternativas e consiste em alimentar a desobediência civil com vistas a fazer a revolução, para alcançar a superação do voto em direção a um estado de reivindicação absoluta, quase mística, em que o cidadão não mais reivindicaria ao governo, mas a essa entidade demiúrgica coletiva cujo nome nem consigo alcançar com meus parcos recursos intuitivos. Nesse "estágio evolutivo final" (alguém notou a contradição em termos?), será proibido pronunciar o nome de Yahveh, ops!, quero dizer, do Estado. Diante do dito e do não-dito, convido humildemente o leitor a uma pequena viagem para fora dessa DOXA (como diria o meu amigo Tiago). Utilizando-me de meus pobres recursos informacionais, recomendo então a leitura de "Minha Formação", de Joaquim Nabuco, e de Democracy: the god that failed (Democracia, o deus que falhou), texto de Hans-Hermann Hoppe, sobre seu livro homônimo. Outro texto muito bom sobre este livro é o de Joseph Stromberg, "Theory, history and the prospects for liberty". "Conservador!", já dirão muitos logo de início. Indisposto que sou quanto a duelos verbais intermináveis, sugiro que continuemos a viagem e que os desinteressados revendam suas passagens. Uma simples leitura do comentário do leitor "roGER" no site da Amazon esclarece qual é um dos alvos imediatos das idéias de Hoppe. O leitor apresenta uma relação dos mais prósperos países do mundo, indicando que são democracias. E uns poucos países atrasados, que são monarquias. A idéia que ninguém questiona e que se paresenta como conclusão aparentemente inevitável: as democracias são mais prósperas que as monarquias. Logo, a democracia é um sistema mais justo que a monarquia. Justamente a partir desse simplismo interpretativo é que Hoppe lança seus questionamentos: "No nível mais abstrato, quero mostrar como a teoria é indispensável para a correta interpretação da história. A história - sequência de eventos que se desvelam ao longo do tempo - é 'cega'. Não revela nada sobre causas e efeitos. Podemos concordar, por exemplo, em que a Europa feudal era pobre, que a Europa monárquica era mais rica e que a Europa democrática é ainda mais rica; ou que a América do século XIX - com seus baixos impostos e poucas regulamentações - era pobre, enquanto que a América contemporânea - com seus muitos impostos e regulamentações - é rica. Contudo, terá a Europa sido pobre por causa do feudalismo? E terá enriquecido por causa da monarquia e da democracia? Ou será que a Europa, ao contrário, prosperou apesar da monarquia e da democracia? Ou será que esses fenômenos simplesmente não têm relação?" A questão da teoria e da história dá o que pensar, principalmente diante do grande prestígio de que goza o marxismo hoje na América Latina. E o marxismo consiste justamente em considerar a história quase como auto-explicativa. Para Marx, a história é a teoria, pressuposto em que ele se funda para dizer que as forças materiais é que "fabricam" as idéias. A colocação da questão nos termos em que o faz Hoppe revela uma total libertação dos preceitos marxistas e traz à tona a triste realidade brasileira: quase ninguém aqui jamais ouviu falar em uma história "cega". Para o perfeito idiota latino-americano (para os desavisados, o termo não é meu), a história revela incondicionalmente o caráter intrinsecamente maligno e instável do capitalismo. A possível resposta de Hoppe seria: "a história não revela nada, cara pálida. A história pode ilustrar a teoria, mas pode ilustrar quase tudo que quisermos". Para Hoppe, como se pode ver, a história é praticamente um recurso retórico. Mas como aceitar isso? Num país como o nosso, onde professores negam a existência de critérios objetivos para validar quaisquer afirmações do homem sobre o mundo, como pode alguém acreditar que só a intelecção humana, através da teoria, é capaz de interpretar a história corretamente? Como se vê, a história auto-explicativa é o refúgio mais fácil dos semióticos radicais, dos céticos e de todas as demais classes de indivíduos que não acreditam no poder que a razão humana tem de alcançar ao menos um grau satisfatório de compreensão da realidade objetiva. E Joaquim Nabuco, há mais de cem anos, observava que a monarquia inglesa era um sistema de governo muito mais eficiente do que a democracia americana. De certo modo, podemos enxergar as idéias de Hoppe como uma versão sofisticada e madura das de Nabuco. Enquanto que Nabuco contentava-se em admirar a monarquia, fundado em fortes argumentos, Hoppe observa que ambas são regimes deficientes, embora esta última seja até preferível. Nabuco citava Walter Bagehot ("The English Constitution"), para explicar suas idéias: "O governo americano gaba-se de ser o governo do povo soberano; mas, quando aparece uma crise súbita, circunstância na qual o uso da soberania se torna sobretudo necessário, não se sabe onde encontrar o povo soberano. Há um Congresso eleito por um período fixo, que pode ser dividido em frações determinadas, de que se não pode apressar nem retardar a duração: há um Presidente escolhido também por um lapso de tempo fixo e inamovível durante todo ele; todos os arranjos estão previstos de modo determinado. Não há, em tudo isso, nada de elástico (...). É um governo encomendado de antemão, e, convenha ou não, ande bem ou mal, preencha ou não as condições desejadas, a lei obriga a conservá-lo". A eficiência da monarquia inglesa vem, segundo Bagehot, da possibilidade de nomeação de governantes sem os consequentes abalos na estabilidade político-econômica da nação, ou a tempo de atender às exigências desses abalos, caso ocorram. Ainda segundo o autor, tão importante quanto a eficiência é a imponência da Constituição inglesa. A existência de uma realeza dá segurança ao povo, ao mesmo tempo em que essa realeza não governa diretamente, mas através de pessoas preparadas e instruídas: "os homens de Estado entre quem a nação tem o direito de escolher sob o governo presidencial são de qualidade muito inferior aos que lhe oferece o governo de gabinete, e o corpo eleitoral encarregado de escolher a administração é também muito menos perspicaz". Todos esses argumentos podem parecer preconceituosos diante do conceito de igualdade social. Mas a verdade é que, se a monarquia se funda na hierarquia e na hereditariedade, a democracia se funda no pressuposto de que todos os membros de uma comunidade enorme são capazes de entender muito bem o que está se passando à sua volta e de eleger aqueles que são mais capazes. Os fatos tornam isso inverossímil, sequer como ideal a ser alcançado. Ainda mais como pressuposto ou ponto de partida. O ideal de que mais de 50% da população algum dia atingirá o grau de entendimento político-econômico-filosófico necessário às reflexões políticas mais elementares me parece deveras inverossímil. E mesmo que atinja, ainda sobra aquele argumento de que a maioria, só porque é maioria, não tem automaticamente (ou ontologicamente) o direito de imperar sobre todo o resto. De forma complementar, a análise comparativa que Hoppe faz da economia política da monarquia e da democracia resume-se grosseiramente no seguinte trecho(peço que perdoem a má qualidade de minha tradução): "Tanto reis quanto presidentes gerarão males. Mas um rei, por "possuir" o monopólio e por poder vendê-lo ou legá-lo como herança, se importará com as repercussões de seus atos no valor de seu "capital". Como proprietário das ações de "seu" território, o rei será comparativamente orientado ao longo-prazo. Com o fim de preservar ou aumentar o valor de sua propriedade, ele irá explorá-la apenas moderada e calculadamente. Ao contrário, um governante democrático temporário e cambiável não 'possui' o país, mas enquanto estiver no comando terá a oportunidade de usá-lo em benefício próprio. Ele possui o uso, mas não as ações do capital. Isso não elimina a exploração. Ao invés disso, torna-a míope (orientada ao curto-prazo) e descalculada, isto é, conduzida sem consideração para com o valor das ações do capital". Apoiado então na teoria, e não na história (já que essa não é auto-explicativa, portanto não prova quase nada), Hoppe quer demolir três mitos: 1) o de que "a emergência dos Estados a partir de uma ordem prévia não-estatista teve como consequência o progresso econômico e civilizacional"; 2) o de que a "democracia representa um avanço em relação à monarquia e é causa de progresso moral e econômico"; 3) o de que "não há alternativa ao Estado democrático de bem-estar social nos moldes norte-americanos". Sua solução envolve a total ausência da instituição estatal e a "produção privada da defesa". Ele faz uma complexa exposição disso em seu ensaio Private Production of Defence e suas idéias configuram uma espécie de anarco-capitalismo em que o mundo se organizaria em pequenas cidades autônomas. Acho que todo mundo devia ler Hoppe, mesmo aqueles que não estão dispostos a abdicar do benefício - cada vez mais ilusório - de não ter de se preocupar com quem bate à sua porta. Tudo bem, temos o Estado para nos dar respaldo e aprendemos que não devemos nos preocupar com a responsabilidade direta de nos defendermos, seja portando uma arma, seja assinando um contrato particular com uma empresa de segurança. Desde o nascimento aprendemos a pensar que existe uma entidade muito poderosa, dotada de polícias e exércitos, que vão nos defender até o fim, se for o caso. Entretanto, pelo simples fato de que esse estado de coisas está cada vez menos "garantido", devemos pensar duas, três, quatro vezes antes de jogarmos todas as nossas fichas no Estado, seja ele de que modalidade for. A grande lição que se tira da leitura de autores como Hans-Hermann Hoppe é a de que um verdadeiro defensor da iniciativa privada ("privatism") não se funda na crença de que os empreendedores são santinhos e honestos, mas sim na afirmação teórica racionalmente fundamentada de que o mercado é um mecanismo que possibilita a minimização das consequências negativas do egoísmo humano. O fenômeno do egoísmo humano não pode ser "apagado" ou "superado" através de campanhas por solidariedade, cidadania, pensamento positivo etc. Ele é decorrência do estatuto ontológico do homem. Uma teoria realista do mundo deve ser capaz de lidar com a inevitabilidade do egoísmo humano (que é decorrência de sua própria imperfeição), sobretudo em questões que envolvem poder. Uma teoria realista deve ser capaz de perceber que um militante da causa social, quando conquista sua parcela de poder (e isso, ele o faz desde o momento em que se torna um militante) é tomado pela cegueira de seus próprios interesses e dos de seu grupo mais imediato, torna-se insensível aos dos outros milhares de grupos e ainda elabora todo um discurso hábil para encobrir esse fato sob a máscara do "estou lutando pela causa dos excluídos". E esse é um processo análogo ao de um mega-empresário ladrão que constrói seus discursos legitimadores. Só que o empresário - ainda que pesem todas as formas de manipulação e propaganda - não pode, em última instância, obrigar o consumidor a lhe dar seu dinheiro, coisa que o Estado faz facilmente com os impostos, por meio da coerção, para atender aos milhares de grupos reivindicatórios que batem à sua porta. A objeção mais comum é a seguinte: "Mas e os mega-investidores? Não manipulam o mercado de acordo com seus interesses?". A resposta é sim e não. Sim porque isso realmente acontece hoje em dia. E não, porque o mercado hoje é um grande monstro disforme que se debate ante o crescente intervencionismo estatal. A fome de democracia se revela através de dezenas de milhares de regulamentações e restrições à liberdade civil (só a União Européia tem mais de 70.000 páginas delas) e transformou o comércio internacional em uma arena política onde só sobrevivem os mais fortes e desonestos. Tente abrir uma empresa e mantê-la totalmente dentro da legalidade. E o pior é que tudo isso vem acompanhado da crença generalizada de que o Estado está cada vez mais impotente diante do mercado - e de que isso precisa ser revertido. Evandro Ferreira |
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