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Sexta-feira, 27/9/2002
Maldita Ciência
Alexandre Soares Silva

Tanta coisa no mundo seria resolvida se, antes de feita a besteira, alguém perguntasse para o autor da besteira: "Por quê?".

O sujeito diria: "Quero fazer tal coisa". Mark Chapman esperando por Lennon na frente do edifício Dakota. Frank Sinatra antes de cantar "My Way". Caetano Veloso escolhendo a roupa pra sair, e vendo uma saia pendurada no cabide. Lenin antes da revolução. Alguém, uma alma gentil e de gosto, perguntaria: "Por quê?". "Ah, mas eu quero fazer tal coisa" (A Revolução Russa, Marimbondos de Fogo, o Tema de Amor de Titanic). A alma gentil sacudiria a pessoa pelos ombros: "Por quê, meu filho? Por quê?". E pronto - a Revolução foi abortada (junto com Sarney e Celine Dion) e o mundo está salvo.

Por exemplo, o Formalismo Russo. Você já deve ter ouvido falar dessa Monstruosa Coisa. Pois bem, essa Monstruosa Coisa foi uma reação a outra Monstruosa Coisa. O monstro original era a visão política, histórica, sociológica da literatura - literatura como descrição da luta de classes. O nome do monstro era Vissarion Bielinski - um crítico de gênio do século XIX russo, obcecado com moral e o sofrimento dos pobres. Segundo Isaiah Berlin, "para Bielinski, todas as indagações sérias se resumiam a indagações morais". Isso, percebam, num crítico de literatura - no crítico mais influente que a Rússia já teve. Ainda segundo Isaiah Berlin: "...Bielinski (...) até o fim de seus dias acreditou que a arte, e em particular a literatura, oferecia a verdade aos que a procuravam; que, quanto mais puro o impulso artístico, (...) maior e mais profunda seria a verdade revelada; e permaneceu fiel à doutrina romântica de que a arte melhor e menos adulterada era necessariamente a expressão não apenas do artista, mas sempre de um meio, uma cultura e uma nação, cuja voz, consciente ou não, era o artista. Sem essa função, ele se tornaria banal e inútil, e somente nesse contexto sua personalidade teria qualquer significado" (Pensadores Russos, Isaiah Berlin).

Acreditar nisso corresponde a acreditar que Jorge Luis Borges, crescendo no bairro pobre de Palermo, foi um produto de Palermo; que Palermo falou através de sua boca, como o Faubourg Saint-Germain supostamente falou pela boca de Proust. E tantos russos acreditaram nisso. Pense em Gorki, pouco antes da Revolução, dizendo que o escritor é "os olhos e os ouvidos de sua classe".

Pois bem, essa foi a monstruosidade original. Em reação a essa visão sociológico-histórico-topográfica da literatura, surgiu outro monstro, com nome de monstro mesmo, em São Petersburgo. O nome do monstro é OPOJAZ - que significa Sociedade Para os Estudos da Linguagem Poética. Esse monstro tinha quatro cabeças: quatro rapazes secos e sérios chamados Shklovsky, Eikhenbaum, Brik e Tynianov.

Pela boca de Eikhenbaum o monstro disse, com grande solenidade (como são sérios os monstros): "Nós nos caracterizamos pela tentativa de criar uma ciência da literatura, que seja autônoma e estude material especificamente literário".

René Wellek disse do Monstro que "o Formalismo foi no início deliberadamente e definitivamente anti-histórico". Boris Schnaiderman diz a mesma coisa, no prefécio que escreveu para "Teoria da Literatura - Formalistas Russos": "Desde o início a nova corrente se caracteriza por uma recusa categórica às interpretações extraliterárias do texto. A filosofia, a sociologia, a psicologia etc não poderiam servir de ponto de partida para a abordagem da obra literária".

Ora, até aqui quase se pode dizer que o Monstro faz sentido. Mas quando as quatro cabeças do Mostro insistem que querem criar uma abordagem científica para o problema literário - quando, perto dali, um outro Monstro chamado Círculo Linguístico de Praga diz que "É preciso elaborar princípios de descrição sincrônica da língua poética" - quando, em outras palavras, vários rapazinhos solenes espalhados pela Europa dizem que querem ser muito científicos - como eu queria, meu Deus, que aparecesse uma velhinha sensata na vida deles, que os olhasse de alto a baixo, sorrisse e dissesse: "Por quê?"

Os Monstros (OPOJAZ, Círculo Linguístico de Praga, Círculo Linguístico de Moscou) numa voz só repetiriam: "É preciso elaborar princípios de descrição sincrônica da língua poética, minha boa velha". A velhinha sorriria e perguntaria de novo: "Mas por quê, meu filho?".

Oscar Wilde
Por algum motivo, todos querem ser muito científicos. Não se sabe bem por quê, exceto que parece uma coisa progressiva para se fazer. De modo que uns estudam larvas, outros estudam estrelas, e outros estudam Senhora, de José de Alencar. Pegam nas suas mãos enluvadas o mesmo livro que suas avozinhas liam para suspirar um pouco, e estudam, dissecam (eles gostam dessa metáfora, o estudioso de literatura fazendo a autópsia da obra literária).

Mas pense na literatura como uma longa frase de espírito. Pense em cada livro como tentando ser uma peça de Oscar Wilde (e mais ou menos falhando).

Não, melhor ainda, imagine isto.

Oscar Wilde está sentado ao canto de uma sala. Ao seu lado estão seu mestre Walter Pater e o pintor americano Whistler. Na frente deles três está sentado, tomando chá, um Homenzinho Sério.

Oscar Wilde diz, languidamente: “Há algo de trágico no enorme número de jovens existentes atualmente na Inglaterra, que começam a vida com perfeitas perspectivas e acabam adotando alguma profissão útil”.

Pater e Whistler riem. É só o que qualquer pessoa normal faria (embora Deus saiba que Pater e Whistler não eram pessoas normais). Mas o Homenzinho Sério está anotando tudo num caderninho, e pede, por obséquio, que Wilde repita a frase para que ele a anote direitinho. E ele não se limita a anotar a frase – faz uma análise sintática, põe flechinhas aqui e acolá. Acima da frase de Wilde também se pode ver um graficozinho, mostrando a ascensão da humorosidade da frase.

O Homenzinho diz: “Ah, percebo. Que interessante. A qualidade eminentemente humorística ou, por assim dizer, no dizer dos leigos, espirituosa da sua frase se deve a uma técnica de inversão – em meio à oração adjetiva restritiva o sentido esperado é torcido, a espectativa criada é frustrada, e a sentença termina do modo oposto ao que se esperava. Esse assalto sistemático ao lugar-comum é, como se vê neste gráfico que eu mesmo fiz, a fonte mesma da energia humorística da sua frase. Pode repetí-la mais uma vez? Quero comparar esta frase com aquela outra, como era mesmo – ah sim, está aqui: Posso resistir a tudo, menos à tentação”.

Esse Homenzinho Sério seria desprezado e expulso do salão; pois que seja desprezado e expulso da literatura. Que sua cueca seja puxada até o pescoço, que seu caderninho seja jogado de mão em mão enquanto ele corre atrás dele – gemendo, chorando, e pedindo, exausto, pela ajuda de seu tetracéfalo deus OPOJAZ.

Hein? Espera...

Explicação
Tudo isso acontece - ah, vou arriscar uma explicação. Digam se soa convincente. Tudo isso acontece por causa da Revolução Francesa - porque depois dela cavalheiros foram substituídos por gentinha em quase todas as esferas da ação e do pensamento humano. Gentinha criou o formalismo russo, o estruturalismo, a semiótica, a Literatura Marginal, a Poesia Concreta, o rap. Nenhum cavalheiro estuda um romance ou poema - um cavalheiro um romance ou poema, rindo ou achando triste, conforme o caso. Cavalheiros não sublinham trechos. Cavalheiros não desenham gráficos.

Uma frase de Kurt Vonnegut, Jr.
"Há muito sinto que qualquer crítico que expresse fúria e desprezo por um romance é um tanto absurdo. É como alguém que pusesse uma armadura completa para atacar uma banana split."

Está certo, essa imagem do romance como uma banana split (divertido, inocente, inconsequente) não dá bem idéia, por exemplo, das belezas e complexidades de Moby Dick ou Kadji Murat. Mas é bem melhor e mais humana do que a visão do romance como matéria fecal numa saleta fria do Laboratório Fleury, sob o olhar metódico de um analista-cientista - sob seu nariz cuidadosamente científico.

Humpf!


Alexandre Soares Silva
São Paulo, 27/9/2002

 

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