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Segunda-feira, 14/10/2002 Solidariedade na colméia Marcelo Barbão Nestes dias de calor absurdo em São Paulo, eu fiquei imaginando como deve ser a vida numa colméia. Isso mesmo, numa colméia. O excesso de abelhas, o entrecruzar de corpos, as vidas ligadas pelo contato mais do que próximo. É essa confusão de pessoas e lugares que podemos sentir do livro "A colméia" do espanhol Camilo José Cela. A forma fragmentada e a profusão de personagens que se chocam na história dão uma prazerosa sensação de vertigem e, aos poucos, de forma sutil, conseguimos unir os fios do enredo. Escrito entre 1945 e 48, em plena Espanha franquista, "A colméia" mostra uma sociedade burocrática e baseada no medo. É o país vigiado, onde ninguém se sente livre e qualquer um pode ser condenado sem mesmo conhecer as acusações. Cela retrata também a situação da mulher dentro do conservadorismo reinante. A necessidade de vender o corpo como forma de ascensão social (talvez uma das únicas) é algo presente em quase todos os personagens femininos. Talvez tenha sido isto que levou à proibição da obra pelo governo franquista. "A colméia" foi publicada pela primeira vez em 1951, mas em Buenos Aires. O próprio autor, perseguido neste período, chegou a cogitar sua partida para a cidade argentina. Permaneceu na Espanha e teve seu trabalho reconhecido, ganhando vários prêmios, inclusive o Nobel de literatura em 1989. Trabalhou sem parar até seu falecimento em 2001. Apesar do grande número de personagens que passam pela narrativa, a história gira em torno de um escritor vagabundo que paira pelos bares e cafés da Madri dos anos 40. Martín Marco vive às custas de amigos e da irmã que o alimenta às escondidas do marido. Ex-militante de esquerda, Martín vive paranóico sobre a descoberta de seu passado. Isso torna difícil sua relação com a vida, transformando-o num poeta que é expulso dos cafés por não ter nenhuma moeda para gastar. E quando, depois de uma boa noite de amor e sexo com Purita, Martín decide "dar um jeito" na sua vida, sua paranóia transforma-se em realidade. Mas, ficar somente na história de Martín é diminuir o caleidoscópio criado por Cela neste livro. O autor costura diferentes histórias entrecruzadas, e algumas só chegam a ser citadas e esquecidas rapidamente. Como a de dona Margot, assassinada em seu próprio apartamento, enforcada com uma toalha enquanto seu filho, homossexual (ou fresco, como se dizia), passeava com seu par pelas ruas escuras de Madri. E, enquanto os moradores do prédio de dona Margot faziam uma busca nos seus apartamentos para garantir que o assassino não estava escondido, dom Fernando, um dos vizinhos, encontra o amante de sua mulher dentro do cesto de roupas sujas. Ou a jovem Victorita, funcionária de uma gráfica e noiva de Paco. Para salvar seu noivo, acometido da pneumonia, Victorita pensa em partir para a prostituição e se assusta quando Paco concorda com a idéia. Também dona Visi que acredita que sua família está indo bem. Pensa que a filha vai se casar com um tabelião, sem imaginar que numa tarde sua filha cruzou com o pai num prostíbulo: ele entrando, ela saindo. Ao lado da mesquinharia e da maldade que existem em certos personagens, principalmente Dona Rosa, a proprietária do café onde a história começa, existe uma tremenda solidariedade que cruza todo o livro. E não são somente os personagens que podem ser ruins ou mesquinhos, mas é o clima social da Espanha pós-Guerra Civil, o que torna a solidariedade entre os menos afortunados, mais necessária ainda. E os exemplos são vários: Victorita que ajuda seu namorado; Nati, a ex-universitária e companheira de Martín, que lhe dá dinheiro; Petrita, empregada da irmã de Martín, e vítima de um amor não declarado por este, que se entrega a Celestino, dono de um bar, em troca do perdão da dívida de Martín. Além, é claro, da própria solidariedade construída ao redor de Martín quando ele é convocado através do jornal para comparecer ao Juizado Militar para prestar esclarecimentos sobre seu passado. Camilo José Cela consegue construir uma novela política, sem partir para o moralismo, usando, ao mesmo tempo, um estilo envolvente e desafiador. Apesar do atraso no lançamento, não dá para perder este livro que pode ser considerado um marco na literatura espanhola. Para ir alémA colméia Camilo José Cela 407 páginas Bertrand Brasil Marcelo Barbão |
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