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Sexta-feira, 18/10/2002
Lula Já É Um Coitado
Alexandre Soares Silva

Lula nem venceu ainda as eleições e já é um coitado. Já ouvi vários petistas dizendo: "Coitado, não vão deixar ele fazer nada". Mesmo ganhando ele é um coitado! Vai ser sempre um coitado - vai ser sempre considerado perseguido, marginalizado, vítima. Até mesmo na posição menos marginalizada (por definição) do mundo. Vai ser o presidente-do-qual-todos-tem-pena. Coitado, ele até que se esforça pra falar direito. Coitado, ele melhorou, vai.

Estou um pouco cansado de, eu no sol, ter pena de quem está na sombra. O mundo está cheio de falsos coitados - nem todos presidentes ou senadores, aliás. Rappers, por exemplo. Especialmente os brasileiros. Vêm da periferia, tudo bem; talvez continuem a viver lá. Mas a renda deles é maior do que a minha. Não sei qual a renda deles, mas sei qual é a minha, e é difícil que a deles seja menor do que a minha. E no entanto eles vão ser sempre os explorados, eu o explorador; eles povo, eu burguês (no sentido marxista, que é o único que eles conhecem; é claro que eu jamais poderia ser considerado burguês no sentido flaubertiano do termo. É só olhar pra mim! Por favor!).

Ou escritores da Literatura Marginal. Tenho sempre medo, ao ouvir esse termo, de ser parado num farol por um escritor de sotaque periférico (há um sotaque periférico, sim, bem desagradável, e frequentemente imitado por modelos lindinhas em propagandas de sandálias), apertando um caco de vidro contra o meu pescoço, me tirando do carro, me arrastando para um matagal e me forçando, em decúbito ventral, a ler "AS OBRA COMPLETA DE FERRÉZ". Mas não, o termo não significa que esses escritores sejam criminosos, como Genet ou Villon. Nem que escrevam sobre criminosos, como Sax Rohmer, Maurice Leblanc ou Richard Stark. Não - quer dizer que esses escritores foram, são, marginalizados pela sociedade - coitados. Isso apesar de aparecerem em todas as revistas literárias na qual você não pode entrar, e darem palestras em centros culturais, e aparecerem em programas de tevê, debates em universidades, cadernos de domingo. Não importa o quanto a sociedade os coloque num pedestal - do alto desse pedestal eles insistem (em patois) que são marginalizados. Da capa de várias revistas eles gritam (errando a concordância com charme de lúmpen) que a sociedade não quer enxergar suas caras feias com dentes de ouro. Podem ficar ricos, podem ser vistos jogando golfe ou namorando ex-mulheres de empresários, mas vão ser sempre coitados, coitados.

Inveja, inveja, dirá você (não você, é claro; você foi sempre tão gentil comigo! Aquele sujeito ali). Mas como pode ser inveja minha, se eles são coitados? Eles são invejáveis, ou são coitados? Decida-se, decida-se. Não pode ser os dois.

Ser elite é um estado da mente, caramba!

Vou explicar o segredo de ser elite. Presta atenção: não é preciso ter dinheiro. Dinheiro talvez até atrapalhe. Não, basta sentar numa almofadinha no banheiro e meditar. Ser elite é um estado da mente; e a prova disso é que, ao lado de um rapper rico, no seu iate tão branco como a farinha nos dentes de Mano Brown, eu vou ser sempre elite, mesmo sem dinheiro para comprar lentes de contato, meu Deus. E eles vão ser sempre vítimas. Vítimas jogando golfe, mas vítimas. Porque ser vítima, como ser elite, é um estado da mente.

Bom, eu disse que ia explicar como se tornar elite. Senta na almofadinha. Agora respira fundo e medita na vida e na carreira de Noël Coward.

O primeiro a dizer que este texto é coisa de viado é viado...

Noël Coward (1899-1973) foi uma das criaturas mais charmosas que o mundo produziu. Foi um inglês que compôs e cantou suas próprias músicas ("Mad dogs and Englishmen", por exemplo), cantando num estilo que te parece antiquado, seu filisteu - mas na verdade é o estilo com que os anjos cantam quando querem impressionar Audrey Hepburn nas longas festas que dedicam a ela no céu. Coward (que nome, vamos e venhamos) também escreveu peças de teatro. Infelizmente elas são comparadas com as de Oscar Wilde; isso é um erro, porque perto das peças de Wilde nenhuma peça do mundo é engraçada. Não, esqueça essa comparação. O humor de Coward e mais calminho, mais sutil, mais sofisticado. Na verdade esqueça o humor dele, não espere pelo humor - deixe que o humor o surpreenda aqui e ali.

Além disso Coward escreveu o roteiro de um dos melhores filmes de todos os tempos - o triste (me recuso a dizer "meloso", mas fique à vontade) Brief Encounter (1946). E como se não bastasse isso, Coward foi um mestre do estilo pessoal - fotografado na juventude numa pose de chinês opiado, usando pijamas de seda, falando no telefone - sempre vestido melhor do que todo mundo à sua volta; e considerado pelo mundo, no século vinte, como a própria imagem da elite inglesa. Pois bem - medite nisso enquanto estiver sentado na sua almofadinha - ele nasceu pobre. Não só pobre - cockney, meu Deus. Foi uma criança de teatro, sem tempo nem dinheiro para educação formal (aqui Mano Brown teria empatia, e murmuraria que também cursou "as aula da vida"). Ainda molequinho roubou gravatas em lojas para poder se vestir bem (você imagina um rapper fazendo isso? E, mesmo que roubasse gravatas - roubaria as gravatas certas?). Não se tornou elite - nasceu elite, mesmo nascendo pobre. Não se esforçou - apenas foi. Agora sintonize a sua mente com a dele, e pare de se chamar de povo, vítima, explorado, pobre, coitado. Sobretudo pare de se chamar de coitado... Você é um aristocrata e não sabe...

Alexandre Soares Silva
São Paulo, 18/10/2002

 

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