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Quinta-feira, 31/5/2001
Fome de ler
Vera Moreira

Uma biblioteca tem o poder de exercer um fascínio muito singular sobre as pessoas. Mesmo quem não tem o hábito de ler, se encanta com uma bela biblioteca. E para quem desfruta dos ilimitados prazeres de um bom livro, a biblioteca é o espaço mais mágico que pode existir, uma promessa, o universo entre as quatro paredes, a vida pulsando em fileiras, a energia se desprendendo do pó de onde viemos e para onde vamos - a única alternativa concreta de nos entendermos um pouquinho. Desde criança eu entrava em transe na biblioteca pública de Porto Alegre e na biblioteca do Instituto Cultural Brasileiro Norte-Americano, ambas no centro da cidade, uma provocantemente perto da outra. Seus corredores apertados e sombrios, o silêncio meditativo, o mundo se oferecendo e eu viajava pela origem do universo, a pré-história, a ciência e os romances de aventura.

Depois de crescida, já em São Paulo e com o interesse pela cozinha em franca evolução, conheci a minha primeira biblioteca de gastronomia. Até hoje tenho gravado na memória o impacto que me causou, como se eu tivesse entrado lá ontem. Era difícil acreditar que ali estavam mais de 5 mil títulos só sobre comida, em português, italiano, francês, inglês e outros idiomas. Meu fascínio foi ainda maior do que já seria normalmente, devido ao seu dono, uma das pessoas a quem mais admiro nessa existência: Massimo Ferrari. Este restauranteur, que é uma das raras unanimidades no país, tem o dom de encantar as pessoas com seu sorriso largo e a sua generosidade. Ele me abriu as portas do seu templo sagrado e definitivamente ali selei meu amor eterno com a gastronomia. Massimo tem um cuidado todo especial com a sua biblioteca e, inventivo, colocou uma máquina de embalar comida a serviço das suas preciosidades. Uma tal MakPack com algo em torno de 2 metros de comprimento e em uma das extremidades um rolo de filme plástico destinado à proteção de alimentos, que então poderiam ir direto ao freezer. Daquela MakPack nos altos da Alameda Santos, no entanto, jamais um prato foi ao freezer, mas as receitas foram inúmeras vezes para as prateleiras. Massimo consulta exaustivamente seus livros, reflete, faz anotações, embala-os novamente e desce para a cozinha, onde faz ferver o caldeirão do conhecimento junto com a sua equipe. O resultado sabe muito bem quem já teve o privilégio de sentar em uma das alegres e sofisticadas mesas do seu restaurante Massimo.

Desde então, me dediquei a formar minha biblioteca gastronômica e hoje sinto um orgulho tremendo em já ter reunido cerca de 500 títulos. Sei que ainda é pouco, mas é o que permitiu o orçamento fragmentado em prioridades - mesmo em épocas de vacas muito magras, não deixei de comprar um bom livro de cozinha no mês. Sim, porque sempre há outros livros a comprar, mas os títulos gastronômicos são as pérolas, diamantes, rubis e esmeraldas da minha biblioteca... Lembram aquela propaganda do primeiro sutiã? Pois eu jamais vou esquecer o meu primeiro livro de cozinha: "The taste of France", de Robert Freson, que como a biblioteca do Massimo, ganhou especial importância pra mim por ser presente da inteligente editora Cynthia de Almeida, no Caderno 2, do Estadão, onde eu começava minha carreira de repórter gastronômica. Foi o desabrochar de uma vocação, digamos assim, que começara a se desenhar quando, aos 9 anos, ganhei de meus queridos pais o livro "Uma casa na floresta", de Laura Ingalls Wilder, que contava a história de uma família isolada no meio de uma floresta, obrigada a viver dos próprios recursos, mostrando a fibra, a energia, a coragem e a tenacidade que ainda são as qualidades supremas para a sobrevivência. As descrições das atividades da família são de uma riqueza singela e até hoje me encantam. Os processos de elaboração dos alimentos, definitivos, a tradução em letras do que eu via durante as férias na fazenda de meus padrinhos em Dom Pedrito, no pampa gaúcho. A vida se alimentando da morte, o que revolta meu amigo Fabio Danesi Rossi, mas que pra mim, desde criança, parece ser a ordem natural das coisas. "Pa (o pai) tinha um porco, que corria solto na floresta, vivendo de bolotas, nozes e raízes. Mas agora Pa o pegou e o colocou num cercado feito de toras, para engordar. Iria matá-lo assim que o tempo esfriasse bastante para conservar a carne congelada. Uma vez, no meio da noite, Laura (a filha caçula) acordou e ouviu o porco guinchando. Pa pulou da cama, apanhou o rifle na parede e correu para fora. Então Laura ouviu dois tiros. Quando Pa voltou para dentro, contou o que tinha acontecido. Vira um grande urso preto, parado, perto do chiqueiro. O urso estava-se debruçando para agarrar o porco, que corria e guinchava, assustado. Pa viu tudo isso à luz das estrelas e atirou rápido. Mas a luz era pouca e, na sua pressa, errou os tiros. O urso fugiu para a floresta, sem qualquer ferimento. Laura ficou triste porque Pa não acertara no urso. Ela gostava muito de carne de urso. Pa também lamentou o fato, mas disse: De qualquer maneira, salvei o presunto". Eu, particularmente, nunca conseguiria matar os meus gansos Leo e Lelê - é outro contexto -, mas acho natural que isto seja feito.

Logo depois de "The taste fo France", adquiri o que se pode considerar a bíblia do gourmet (ao lado da Larousse Gastronomique): "A fisiologia do gosto", de Brillat Savarin. Data de 1825 e incorporou-se a um volume crescente de publicações da época em que a própria palavra gastronomia era oferecida ao uso corrente (em 1801). A inovação dos autores da época consistiu em escrever para o grande público, um público que existia havia pouco tempo e passara a ter interesse na mesa e seus prazeres. Brillat-Savarin, colocado nessa posição privilegiada da história; sendo testemunha e participante de transformações sociais fundamentais, reconheceu no tema da comida e do gosto um operador universal do discurso. Para falar de comida e do ato de alimentar-se, é preciso percorrer todas as ciências sociais e humanas. E esta tem sido a grande viajem para escritores, historiadores, jornalistas e amantes da gastronomia no mundo todo desde então.

O que mais me fascina nos livros de cozinha é a simbiose de informação e poesia, a precisão com que constroem uma história carregada de sentimentos. Vou reproduzir um só trecho para exemplificar, do último livro que comprei neste mês, "Bacalhau", de Mark Kurlansky. "Eles seguem em direção ao alto-mar. Sam, um homem baixo, de cabelos escuros, com maçãs rosadas num rosto bem barbeado, está embrulhado em seu colete salva-vidas escarlate. Leonard está na pequena cabine do piloto, enquanto Bernard, em seu macacão laranja, permanece de pé no convés, ao lado de Sam, olhando contemplativamente para a face escura e brilhante do mar calmo. O céu começa a clarear; quando o sol aparece, as poucas nuvens parecem algodão-doce entre as montanhas rochosas da costa, ainda verdes em setembro. Eles encontram os locais de pesca seguindo marcas no continente. Quando a rocha marrom está alinhada com a torre da igreja, quando certas casas ficam visíveis, ou logo que eles vêem a marca branca na rocha a que deram o nome 'Madame', porque segundo eles ela parece estar de saia e touca, estão prontos para jogar a âncora e começar a pescar. (...) Estes homens fazem parte da Sentinel Fishery, os únicos pescadores de bacalhau legalizados hoje na Terra Nova. Em julho de 1992, o governo canadense proibiu a pesca em águas profundas (...) Quando a proibição foi anunciada, os pescadores de Petty Harbour, que vinham deparando com o rápido declínio da sua antes prolífica pesca, já a reivindicavam há anos. Eles afirmavam, e agora todos reconhecem que estavam certos, que as traineiras que pescavam próximas à costa estavam capturando quase todos os bacalhaus existentes na área. Nos anos 80, os cientistas do governo ignoraram os alertas feitos pelos pescadores que trabalhavam nas enseadas de que o bacalhau estava desaparecendo. Esta surdez custou caro". Dá pra visualizar nitidamente os pescadores dentro do barco, a sabedoria captada da natureza, o movimento do mar, os contornos da cidadezinha portuária ao sopé das montanhas, o estilo de vida dos habitantes, a preocupação com a sobrevivência e o futuro de seus filhos. Este é um trecho da segunda página do Prólogo; imagino o que me espera... (a fome de ler é enorme).

Autores esbanjam talento no trabalho de textos gastronômicos com um rigor de arte tão apurado quanto o da pintura e o da música. Elizabeth David, M.K.Fisher, Patrícia Wells, Paul Bocuse, Hugh Johnson, Isabel Allende, Maria de Lourdes Modesto, Alice B. Toklas, Chuck Williams, Giuliano Bugialli, Joanna Simon, Dorinda Hafner, Jane Grigson e Lorenza De' Medici's, entre tantos outros, muitos que ainda nem conheçoL. Aqui no Brasil já temos bons autores, o que me alegra a alma. Massimo também é um dos leitores entusiastas e incentivadores - ele lembra que em 1984 tinha apenas dois bons títulos de autores nacionais na sua biblioteca, em 1994 já tinha pelo menos 12 e hoje a oferta cresce a cada ano. Não podemos deixar de citar Rosy L. Bornhausen, Saul Galvão, Sérgio de Paula Santos, Rachel de Queiroz, Márcia Algranti, Maria Lucia Gomensoro e Gabriel Bolaffi. Na década de 90, graças a difusão da gastronomia no Brasil, também cresceram os jornalistas especializados e surgiram autores donos de um novo estilo, como Nina Horta, Hamilton de Mello Jr. e mais recentemente o Titã Marcelo Fromer. São as ultra-saborosas e quase sempre divertidas crônicas de comida publicadas em jornais, revistas e sites, que posteriormente rendem livros de coletânea. Tenho adorado ler o Marcelo Fromer na revista "Sabor Pão de Açúcar" (já tem um livro editado: "Você tem fome de quê?"). Seu estilo crítico e sem compromisso, o permite brincar habilmente com as palavras, as situações, os conceitos; uma leitura de um ótimo humor sutil, deleite garantido. Fico torcendo que mais e mais jornalistas e escritores se aventurem neste universo mágico - como eu mesma tenho feito e neste especial do Digestivo Cultural também os meus admiráveis colegas - para que possamos recuperar mais rapidamente o tempo perdido na ignorância gastronômica que imperava no Brasil. Saúde!

Vera Moreira
Gramado, 31/5/2001

 

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