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Terça-feira, 22/10/2002
Um Bonde Chamado Desejo
Nemo Nox

A peça começa com Blanche DuBois chegando em New Orleans para visitar a irmã grávida, Stella, e o cunhado, Stanley Kowalski. Ela precisa pegar o bonde chamado Desejo (Desire, uma rua de New Orleans) e mudar para outro chamado Cemitério (Cemetery), numa clara alusão ao seu percurso na história.

O minúsculo apartamento do casal é importante na trama, pois a falta de espaço acelera e intensifica os confrontos. E confrontos não faltam em Um Bonde Chamado Desejo, com Stanley Kowalski defendendo sua territorialidade, de várias formas e em diversos níveis, contra a cunhada invasora.

Estabelece-se um joguinho de poder, com Stanley tentando intimidar Blanche e mostrar quem manda ali, enquanto ela não se submete e revida brincando (ou talvez não) de seduzir o cunhado. Cada um usa as armas que conhece, e Blanche parece vencer o primeiro round.

Mas Blanche Dubois tem mais de uma mancha em seu passado, e elas não tardam a ser descobertas por Stanley. Primeiro, ela pegou o marido em flagra numa relação homossexual e o pobrezinho, envergonhado, suicidou-se. Depois, ela hipotecou a propriedade da família (sobre a qual Stanley se achava com direitos) e acabou perdendo-a. Em seguida, foi demitida do colégio onde lecionava, acusada de tentar seduzir um aluno. Para completar o quadro, Stanley ainda descobre que Blanche se prostituiu num hotel de baixo nível. (Quem achar que Tenessee Williams e Nelson Rodrigues tinham algo em comum não estará muito longe da verdade.)

Se Blanche Dubois é esse personagem conturbado, Stanley Kowalski não fica muito atrás. Durante toda a peça, o sujeito comporta-se como um verdadeiro animal, e sua defesa do território (com a esposa incluída) tem demonstrações nada sutis, desde atirar um rádio pela janela até bater na esposa grávida. A violência culmina no estupro da cunhada, o que põe um fim nos dois conflitos superpostos: o da disputa pela superioridade e o da sedução.

Stella, apesar de ter um papel secundário na disputa entre a irmã e o marido, acaba por ser o elemento determinante para a compreensão da peça e do ideário de Tennessee Williams. Aceitando, suportando, talvez até apreciando o domínio e o abuso de Stanley, ela forma com ele uma célula familiar coesa e moralista, impermeável a indivíduos de "comportamento alternativo" como Blanche. Mas, ao mesmo tempo, Blanche não pode ser vista simplesmente como vítima do casal, já que é ao menos na mesma medida vítima de sua própria culpa. Revelar seu passado, neste caso, é pedir por uma punição. Ou, num cenário mais otimista, por um perdão. Afinal, como ela mesma diz na memorável passagem, "sempre dependi da bondade de estranhos".

A primeira montagem de Um Bonde Chamado Desejo foi dirigida em New York por Elia Kazan em 1947, com Marlon Brando como Stanley e Jessica Tandy como Blanche. Dois anos depois, Laurence Olivier encenou a peça em Londres, com Vivien Leigh. Quando Kazan dirigiu a versão cinematográfica em 1951, chamou Brando e Leigh para os papéis principais. O filme (que no Brasil se chamou, indesculpavelmente, Uma Rua Chamada Pecado) conquistou os Oscars de melhor atriz (Vivien Leigh), melhor ator coadjuvante (Karl Malden), melhor atriz coadjuvante (Kim Hunter), e direção de arte em preto e branco. Foi também indicado para os prêmios de melhor filme, diretor, ator, roteiro, fotografia, música, figurino e som. No Brasil, Um Bonde Chamado Desejo teve várias encenações de grande porte, sendo as mais lembradas a de 1950, com direção de Ziembinski e Henriette Morineau como Blanche, e a de 1965, com direção de Augusto Boal e Maria Fernanda como Blanche.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Nemo Nox é editor do blog Por um Punhado de Pixels e do site Burburinho, onde este texto foi originalmente publicado.

Nemo Nox
Washington, 22/10/2002

 

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