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Terça-feira, 5/11/2002
Florbela Espanca, poeta
Jardel Dias Cavalcanti

Dedicado ao Mário Alex

"Eu vejo uma rosa nas trevas".
(Maeterlinck- Pelléas e Melisande)


Florbela Espanca suicidou-se às duas horas da manhã do dia 8 de dezembro (dia de seu aniversário), do ano de 1930, bebendo dois frascos de Veronal (um sonífero extremamente forte). Ela já havia tentado suicídio duas outras vezes. Uma anotação em seu diário já anuncia a predisposição para este corajoso ato fatal: "Estou hoje num dos meus dias cinzentos; dia em que tudo é baço e pesado como a cinza, dia em que tudo tem a cor uniforme e nevoente dele, desse cinza em que às vezes sinto afundar o meu destino. Fizeram-se ruínas todas as minhas ilusões, e, como todos os corações verdadeiramente sinceros e meigos, despedaçou-se o meu para sempre."

Ao se olhar para a fotografia mais conhecida de Florbela Espanca, podemos observar que a poetisa era uma jovem muito bela e atraente. Segundo sua biógrafa Maria Alexandrina ela era esbelta, graciosa, de porte senhoril, fartos cabelos negros, pele fina e transparente, sedosa e bela, a que se juntava um culto do traje moderno totalmente inovador, com direito a peles e saia-calça (uma novidade francesa). Não podemos deixar de imaginar sua presença como a da parisiense do poema "A uma passante", de Baudelaire: "Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,/ uma mulher passou, com sua mão suntuosa/ erguendo e sacudindo o vestido./ Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.(...) No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,/ a doçura que envolve e o prazer que assassina. Que luz!..."

Esta imagem da poetisa, com sua capeline e o seu colar de pérolas, fixa um tipo social que se traduziu, nos preconceitos da provinciana e conservadora sociedade portuguesa, na figura da vagabunda letrada.

A biografia da autora revela uma mulher inovadora para o seu tempo: uma cultura ampla, vários casamentos, divórcios, abortos, intensa vida boêmia com companheiros intelectuais e artistas e, como se não bastasse, conotações eróticas que revelam o desejo feminino ganhavam expressão na sua poesia. Um conjunto de fatos, portanto, que causava a inveja e a ira das limitadas mulheres portuguesas daquele tempo (que caluniavam, sempre que podiam, a poetisa).

Agora, através do livro "Sonetos de Florbela Espanca" que a Bertrand Brasil lançou este ano, em sua 12a. reimpressão, podemos ter acesso a quatro livros que formam a edição completa dos sonetos da poetisa. São eles: "Livro de Mágoas" (1919), "Livro de Soror Saudade" (1923), "Charneca em Flor" (1930) e "Reliquiae" (1931). O conjunto dos quatro livros formam o total aproximado de 150 sonetos, atravessando 10 anos da produção poética de Florbela Espanca.

Trata-se somente de poemas compostos em forma de sonetos. Para quem não sabe, do ponto de vista formal, o soneto é uma composição poética de quatorze versos, dispostos em dois quartetos e dois tercetos. O metro mais usado é o decassílabo rimado, ora de forma emparelhada (AA), ora de forma interpolada (ABBA).

O verso de dez sílabas foi uma das formas preferidas pelos poetas clássicos do século XVI. Petrarca foi um dos principais poetas que escreveu um grande número de sonetos. Ele domina também o poema épico "Os Lusíadas", de Camões e foi recuperado mais recentemente entre nós por Vinícius de Moraes.

O soneto foi submetido primitivamente a rigorosíssimos preceitos. Depois se libertou de quase todas as peias que o embaçavam, sendo cultivado com o máximo de independência e de arbítrio. Tem variado, por isso, de modo extraordinário, o critério seguido pelos poetas na disposição das rimas no soneto.

Nos sonetos de Florbela Espanca o transe sentimental parece ser inerente à sua própria natureza: ali estão o sonho, o amor, a desilusão, a morte, a dor, as carências afetivas, os devaneios e a solidão por vezes doce, por vezes profunda - estes temas resumem a vida secreta e misteriosa que o talento da poetisa perlustrou.

Experimentamos um indizível encanto com a leitura destes sonetos. Nos perguntamos: porque, afinal, somos tocados tão ternamente? A resposta é que o êxtase produzido pela poesia de Florbela Espanca se traduz no fato de que seus sonetos são uma linguagem musical superior, resultado de uma simetria de cadências e, sobretudo, do ritmo, que quase se confunde com o compasso da música. Daí seu poder de sugestão sendo, ao mesmo tempo, melodia e pensamento.

Não é pelo imprevisto, nem pela raridade dos vocábulos, que a autora consegue nos impressionar. Não é, também, pela ousadia de ritmos novos e surpreendentes. Menos ainda influi uma qualidade excepcional de rimas.

Embora estes artifícios sejam importantes, o que nos causa forte impressão é a sinceridade dos sentimentos que os versos traduzem; é a singela linguagem, admiravelmente adaptada aos temas das composições; é a espontaneidade da expressão; é a harmonia dos versos no seu ritmo exato e irrepreensível; é a beleza do pensamento, trabalhado com esmero e apurado trabalho artístico.

Em um soneto como "Para que?!" a poetisa nos transmite o terrível sentimento do vazio que é a vida. Vale registrar a precisão e a felicidade com que, apenas no primeiro quarteto, a poeta já nos preenche com a sugestão imediata da nulidade da vida que toma seu coração.

Tudo é vaidade neste mundo vão...
Tudo é tristeza, tudo é pó, é nada!
E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o coração!


Nenhuma palavra ali é supérflua; todas se casam e se ajustam harmonicamente. O contraste de idéias metaforicamente expressas (o renascer da madrugada e a vinda da noite) é de raro efeito sugestivo e desperta uma vibração de simpatia e de solidariedade humana em torno deste pesar.

Nos transmitindo a idéia de que sua angústia é maior que tudo, já que fundada numa desilusão com o amor, este metaforicamente pisado como uma frágil pétala ao chão, ela diz no próximo quarteto do mesmo poema:

Até o amor nos mente, essa canção
Que o nosso peito ri à gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão!...


Por meio de uma imagem tão graciosa como sentimental e brilhante, ela comunica, nos dois tercetos finais de "Para que?!", sua desilusão com o amor (esta espécie de último recurso a nos salvar da nulidade da vida), através de uma reflexão negativa sobre o beijo:

Beijos de amor! Pra quê?!... Tristes vaidades!
Sonhos que logo são realidades,
Que nos deixam a alma como morta!

Só neles acredita quem é louca!
Beijos de amor que vão de boca em boca,
Como pobres que vão de porta em porta"...


O sentimento de que a vida é uma espécie de mendigar inutilmente, de porta em porta, uma gota qualquer de amor, é finalmente completo ao término do poema. Tudo isso em versos claros, simples e sonoros, sem a introdução de palavras parasitas, sem pedanterias de estilo nem preciosismos de vocabulário exótico, ou de sintaxe retorcida.

Os sonetos de Florbela, de uma forma geral, devem ser lidos, ou melhor, recitados lenta e gravemente. A sua dignidade artística exige uma seriedade e uma compenetração suave na leitura. Eles traduzem um universo de sentimentos singelos que, ao que parece, não nos habitam mais em nossa encouraçada vida contemporânea. Mas a maior glória de sua poesia se traduz exatamente aí, nessa possibilidade que temos de, virtualmente, mergulharmos nesse mundo perdido.

Num mundo onde se troca o amor como mercadoria, como dói ler um poema como "Fumo", que, ao trazer de volta o triste sentimento da perda amorosa, nos informa também o quanto temos sido técno-racionais em nossas relações afetivas.

No poema de abertura do primeiro livro do presente volume ("Livro de Mágoas"), Florbela anuncia no poema "Este livro", a quem ela dirige seus poemas: aos seus "irmãos na dor".

Este livro é de mágoas. Desgraçados
Que no mundo passais, chorai ao lê-lo!
Somente a vossa dor de torturados
Pode, talvez, senti-lo... e compreendê-lo.


Numa série de desesperançados poemas, Florbela nos envolve em sentimentos angustiosos e pesarosos, ampliando nossa tristeza, na verdade, fazendo-a brotar de algum lugar bem escondido dentro de nós.

São poemas compostos por ricos universos de metáforas. Como a Dor, que aparece como um invasor, que se aproxima a passos largos, cadenciados, trazendo um frio mortal, perseguindo e se grudando à personagem: "andando atrás de mim, sem me largar!" Na imagem do ser desterritorizado, traduzido metaforicamente na imagem da mendiga que caminha sem saber para onde vai. Ou ainda o amor perdido, traduzido na belíssima e simples imagem do seguinte verso: "fumo leve que foge entre meus dedos!".

Todo esse material singelo e espiritual que compõe os sonetos de Florbela merece uma leitura delicada - se não, a medida de sua profundidade nos escapa. Enganados pelo ritmo da inconstância, da frieza ao qual nos habituamos, corremos o risco de perdermos a fragrância que brota destes versos se não o encontrarmos através da serenidade que exigem de nós:

Só Schumman, meu amor! Serenidade...
Não assustes os sonhos... Ah! Não varras
As quimeras... Amor, senão esbarras
Na minha vaga imaterialidade...


A própria Florbela nos fala, no poema "O meu soneto", desse confluir de sentimentos que pode brotar da leitura de seus versos: "Em ti andam bailando os meu sentidos..." A palavra ideal para uma relação com a poesia de Florbela Espanca é cumplicidade.

A musicalidade que nasce dos seus sonetos é rapidamente reconhecida, se internalizando em nós a cada leitura. Os ritmos suaves são esquemas encantatórios a nos envolver na sublime paisagem dos sentimentos nobres. Por isso, talvez, seja fácil transpor os sonetos de Florbela para a música, como o fez, por exemplo, Raimundo Fagner, com suas versões de "Fumo" e "Fanatismo".

Um tema caro à poesia de Florbela é a morte. Não a morte violenta e/ou trágica. O que ela busca é um retorno nostálgico ao "Não ser". Não procura a graça nem a beatitude eterna, mas antes o Nada. Desse ponto de vista, não há dúvida, ela é irmã espiritual de Baudelaire.

Só que, menos trágica que o maldito poeta francês, sua busca expressa uma certa nostalgia por um tempo perdido, que não é outro que o mundo verdadeiro, sem máscaras, o mundo dos momentos puros, reencontrado na inocência original, que nos faz ver de forma mágica o "ouro duma flor aberta".

Quem me dera voltar à inocência
Das coisas brutas, sãs, inanimadas,
Despir o vão orgulho, a incoerência:
- Mantos rotos de estátuas mutiladas!


Embora a poesia de Florbela esteja sempre contaminada por uma persistente melancolia desesperante, também brota um movimento otimista e de felicidade de alguns de seus sonetos. A natureza parece, por vezes, trazer o reflexo de seu brilho e fulgor para o coração da poetisa. Como é o caso do soneto "Primavera", que reproduzimos a seguir:

É primavera agora, meu amor!
O campo despe a veste de estamenha;
Não há árvores nenhuma que não tenha
O coração aberto, todo em flor!

Ah! Deixa-te vogar, calmo, ao sabor
Da vida... não há bem que nos não venha
Dum mal que o nosso orgulho em vão desdenha!
Não há bem que não possa ser melhor!

Também despi meu triste burel pardo.
E agora cheiro a rosmaninho e a nardo
E ando agora tonta, à tua espera...

Pus cor-de-rosa em meus cabelos...
Parecem um rosal! Vem desprendê-los!
Meu Amor, meu Amor, é Primavera!...


Alguns estudiosos da poesia de Florbela acreditam que sua obra guarda o anuncio prévio de seu suicídio. Como se ali pudessem encontrar a biografia da dor, do desespero e da desesperança que minavam a vida da poetisa. Realmente, alguns de seus poemas são calcados nesses sentimentos terríveis. Nos levam a pensar em uma alma angustiada, sem norte e que não encontra saída nem sentido para sua existência. Um poema como "Eu", do "Livro de Mágoas", nos faz pensar assim.

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E nunca na vida me encontrou!


Encontramos também nos diários e cartas da poetisa essa imagem da mulher banhada em tristeza infinita: "Não conto a ninguém esta tristíssima inferioridade de me sentir uma exilada de toda a alegria sã, franca; não mostro a ninguém a miséria de minha miséria de inadaptável, de insaciada."

É também nas cartas que encontramos o depoimento da própria Florbela revelando o sentido de sua condição de "exilada" em busca do infinito. Esse sentido não é outro, acreditamos, que a condição própria de todos os poetas.

"O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais, há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesmo compreendo, pois estou longe de ser uma pessimista; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudades... sei lá de que!"

Os sonetos de Florbela nos mostram que a condição da vida é ilusória e passageira, mas também nos ensinam que sua razão só pode ser encontrada na beleza... através da poesia. Existem alguns versos de Eugênio de Castro, usados por Florbela como epígrafe no "Livro de Mágoas", que traduzem bem o sentido do que acabamos de falar. É com esta epígrafe que fechamos nosso breve comentário sobre os belíssimos sonetos de Florbela Espanca.

"Procuremos somente a beleza, que a vida
É um punhado infantil de areia ressequida,
Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa...."


Para ir além



Florbela Espanca
Editora Bertrand Brasil
189 p.

A poetisa portuguesa Florbela Espanca nasceu em Vila Viçosa, a 8 de dezembro de 1894. Em novembro de 1903, então com sete anos, escreve seu primeiro poema denominado "A Vida e a Morte". Em 1907 aparecem os sinais da sua doença, a neurastenia (irá compor, anos mais tarde, um poema com este nome). Em 1908 sua mãe morre e Florbela vai para Évora prosseguir seus estudos. Em 1912, aos 19 anos, casa-se no civil com Alberto Moutinho. Em 1916 começa a colaborar com o jornal "Notícias de Évora".

Em 1917, se inscreve no curso de direito da Faculdade de Lisboa. Ao mudar-se para Lisboa começa a freqüentar a vida boêmia. Sofre um aborto involuntário. Separa-se do marido e começa ser vista como "vagabunda" pela sociedade portuguesa. Em 1919, publica o "Livro de Mágoas". Em 1921, casa-se novamente. Um novo aborto. Em 1924 outra separação, que leva a sua família a se distanciar dela por dois anos.

Em 1925, novo casamento, agora com Mario Lage. Publica a tradução de romances franceses. Seu irmão falece, tornado-a imensamente triste. Seu casamento se desgasta, vindo a se apaixonar pelo pianista Luis Maria Cabral, a quem dedica os poemas "Chopin' e "Tarde de Música". Tenta suicídio pela primeira vez, talvez por causa do pianista. Em 1930, começa a escrever o seu "Diário do último ano". Depois de uma segunda tentativa de suicídio, revê as provas do livro "Charneca em flor". A 8 de dezembro, suicida-se tomando Veronal.

Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 5/11/2002

 

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