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Terça-feira, 19/11/2002
Um contrabaixo na contramão
Jardel Dias Cavalcanti

"Natural, um disco cheio de variações e delicadezas no modo de tratar esse instrumento difícil, mas cheio de possibilidades". (José Miguel Wisnik)

A experimentação inconsequente é a doença infantil do vanguardismo. Alguns artistas ousam ser o que bem entendem, seguindo seus próprios caminhos, em detrimento do que propagam os modismos cristalizados. É o caso do baixista Jorge Oscar, que prefere as harmonias cheias de significações aos ruídos estéreis; que prefere o volteio sensual de vibrações que apaziguam a alma à paralisia cadavérica de uma certa radicalidade narcísica.

Não que o baixista deixe de ser tocado por elementos sinceros da modernidade musical. Eles estão presentes na sua música, mas somente quando é requisitada a transposição de fraturas necessárias à interpretação, não sendo esses elementos, por isso, transformados em regra.

As primeiras notas são do piano, ao qual, em seguida, vai se sobrepondo de forma dominante o som do arco, que desliza grave sobre as cordas do contrabaixo acústico. Uma tranqüilidade sonora nos informa que o instrumentista tem controle total sobre o que faz. Não há desespero, não há correria e, o que é melhor, não há exibicionismos gratuitos. O que ouvimos está mais próximo de uma concentrada oração solitária do que frente ao rumor caótico e superpovoado do mundo. Estamos falando da música "Ave Maria", que abre o CD "Natural", do contrabaixista Jorge Oscar e do pianista Carlos Roberto de Oliveira.

Quando acabava de gravar "Natural", Jorge Oscar foi apresentado ao baixista Ron Carter pelo amigo pianista Guilherme Vergueiro (radicado em Los Angeles desde os anos 80). Ron Carter estava no Brasil participando de uma apresentação como baixista do quarteto de Vergueiro. Nesse encontro, Jorge Oscar aproveitou para oferecer ao músico norte-americano um exemplar de seu CD, pedindo-lhe que escrevesse uma line note sobre o disco. A resposta de Ron Carter foi a seguinte: "Eu não posso me comprometer, mas se eu achar que tenho algo a dizer, eu digo. Mas, se não tiver..."

A resposta veio em uma simpática carta que, entre outras coisas, dizia: "This is the type of music i expect to hear in Brazil!". Esta frase foi usada na contra-capa do CD, que teve seu lançamento independente.

Não podemos deixar de perguntar: afinal, que tipo de música seria essa que Ron Carter diz esperar ouvir no Brasil? Sabemos que o músico tem tocado com jazzistas de várias estirpes: dos tradicionais aos experimentais. E com músicos de várias nacionalidades, inclusive brasileiros. Deduzimos que o que ele espera ouvir, já que é um músico bem informado, não seja música folclórica ou batuques de "afro-descendentes", mas música popular urbana moderna, que provém da bossa-nova (essa mescla de jazz e Debussy) e de uma música instrumental brasileira atualizada pela influência do jazz americano.

Apenas a título de informação, segundo Jorge Oscar, a organização do repertório de "Natural" nasceu a partir de uma palestra que proferiu, em que discutia questões relativas à tênue fronteira musical entre o erudito e o popular (o que já é em si, um traço da modernidade). Não devemos esquecer, portanto, que na interpretação das músicas buscou-se algum tipo de conexão ou diálogo entre o popular e o erudito. Isso fica visível no tipo de tratamento dado às músicas, que dançam na corda bamba de um meio termo musical.

O repertório de "Natural" apresenta várias expressões da música popular brasileira, dentre elas o baião, o choro e o samba-canção, numa interpretação de um universo de autores como Egberto Gismonti, Tom Jobim, Milton Nascimento, Pixinguinha, Edu Lobo/Chico Buarque, João Nogueira. Mas, deve-se deixar claro, Jorge Oscar não está fazendo de seu repertório uma busca das "raízes musicais" brasileiras.

Ainda temos o prazer de encontrar uma rara e belíssima jóia, uma composição do próprio Jorge Oscar, chamada "Saudade", onde, segundo José Miguel Wisnik, "o músico se desdobra como instrumentista e compositor, numa melodia pungente em que o baixo parece conversar consigo mesmo" (ver encarte).

No tom geral do disco mesclam-se dois sentimentos: a melancolia e a alegria. No primeiro caso, um grupo de músicas se desenham ao som do arco que se arrasta buscando uma expressão de sentimentos profundos, que se anunciam como tristeza, melancolia, solidão e saudade. Por exemplo, em "Ave Maria", "Tarde", "Saudade" e "Beatriz".

No segundo caso, há uma expressão de alegria que surge não de forma exaltada ou delirante, mas de modo que seja um par continuador dos sentimentos anteriores. É o caso de músicas como "Clube da Esquina", "Zamzibar" e "Lôro".

Na verdade, em algumas músicas imbricam-se, nos ritmos e nas melodias, um movimento pendular que vai ora do melancólico para o alegre, ora do alegre para o melancólico.

Na música "Luiza", de Tom Jobim, pode-se perceber três ambientações distintas: depois da introdução do piano, temos a primeira, onde o contrabaixo dialoga com o piano em forma de recitativo, onde as frases musicais citadas pelo contrabaixo são acompanhadas pelo piano com acordes ora chapados, ora arpejados e ora em contraponto. Nesse momento, o ouvinte delicia-se tendo a percepção de fragmentos da melodia que vêm e se vão intermitantemente.

Na segunda ambientação temos o improviso do piano, que é na verdade uma maneira da melodia expor-se em sutis variações. E na última ambientação, o contrabaixo reexpõe o tema da primeira parte, dessa vez com o arco do contrabaixo criando um ambiente apaixonado e majestoso.

Chama a atenção no CD o uso do recurso da imitação na abertura de "Lôro", de Gismonti, quando sutis modulações percorrem a música. É uma das músicas imperdíveis do disco.

O diálogo do contrabaixo com o piano se fortalece a cada música, marcando essa comunhão necessária ao encontro de artistas. Não há reservas nas trocas, um instrumento não ampara nem se sobrepõe ao outro (embora o contrabaixo se destaque), ambos caminham em direções paralelas, sem descuidar dos sentidos individuais que reforçam-se neste momento de rara afinidade organizada no encontro do contrabaixo com o piano.

A espontaneidade das músicas de "Natural" ecoa em nós clamando por sucessivas e prazerosas revisitações. E a cada audição descobrimos novas peripécias quase ocultas que o baixo e o piano, de forma sutil, aos poucos nos revelam.

***

Dados sobre os músicos:

JORGE OSCAR:
Jorge Oscar é um artista que tem se destacado em diversas atividades no cenário musical. Atua na área erudita, bem como na popular, e apresenta um potencial pedagógico nato, que o transforma em um excelente professor. Músico de origem popular, começou como autodidata. Inicialmente tocando contrabaixo elétrico. Posteriormente, adquire formação erudita e especializa-se no contrabaixo acústico, estudando com Sandor Molnar Jr, e depois com Makoto Ueda. Estudou harmonia e contraponto com Oswaldo Lacerda e princípios de composição com Camargo Guarnieri.
Na área erudita participou de grupos de câmara, fez parte do quadro da Orquestra Sinfônica da USP (seção de cordas). Em 1990 transfere-se para Unicamp, onde ainda hoje é professor de contrabaixo do depto. de música.
Concertos, gravações, shows nacionais e internacionais, musicais de teatro, TV e uma vídeo-aula direcionada ao contrabaixo elétrico são parte de seu extenso currículo.
Dentre os trabalhos mais recentes, destacam-se as atuações com Sivuca, Ulisses Rocha, Banda Mantiqueira, Harold Danko, Gal Costa e Ed Motta. Além disso, participou dos song books de Djavan, Marcos Valle e João Donato.

CARLOS ROBERTO DE OLIVEIRA:
Natural de São Paulo, Carlos Roberto começou seus estudos de música aos seis anos de idade iniciando-se ao piano com seu tio, o pianista Don Salvador, hoje radicado em Nova York. Em 1970 ingressa no conservatório Dramático e Musical de São Paulo e a partir de 1975 intensifica seus estudos de piano com a famosa pianista e concertista Magdalena Tagliaferro.
Entre seus professores podemos destacar: Hamilton Godoy, Osvaldo Lacerda, Koellreutter com os quais estudou harmonia, estética e composição.
Em 1971 foi o 1o lugar no concurso anual de piano daquele conservatório. Realizou diversos recitais como pianista em São Paulo e no interior, destacando-se seus concertos no Masp. Na área popular participou de diversos grupos como a "banda 150 Macksoud Plaza" e a "Banda Gallery", tembém acompanhou artistas famosos nacionais e internacionais entre eles: Leny Andrade, Peri Ribeiro, Raul de Souza, Hector Costita, Toshiko Akiyishi e Lew Tabackin

NATURAL (CD)
Jorge Oscar (contrabaixo) e Carlos Roberto (piano)
Preço: 20 R$ (incluso despesa do envio pelo correio)
Encomendas: [email protected]

Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 19/11/2002

 

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