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Sexta-feira, 15/11/2002
Filhos de Francis
Alexandre Soares Silva

- (ou: Eu odeio o Hugo Bidê)

Quando Paulo Francis passou da esquerda para a direita, fez com que toda a inteligência brasileira viesse com ele. Há pessoas inteligentes na esquerda, eu sei (ou imagino). Mas são todas pessoas de cinquenta, sessenta anos. Qualquer pessoa inteligente que tenha lido Paulo Francis na adolescência veio com ele para o lado liberal da força.

É o caso de todos os blogueiros com algum talento. Todos, todos. Foram todos influenciados por Paulo Francis quando tinham dezesseis, dezessete anos - ou alguma outra idade igualmente influenciável. Em alguns casos a influência é evidente, em outros não - mas são todos filhos de Francis. Fabio Danesi é capaz de citar vários trechos escritos pelo Paulo Fancis, de cor. Rafael Azevedo sempre relê seus recortes do Estado de S.Paulo, e sustenta, contra a opinião de Daniel Piza, que late Francis (Nova Iorque) é melhor que early Francis (Ipanema). Todos eles, em algum momento ou outro, se declararam publicamente anti-Lula.

Mas é realmente difícil apontar um só blogueiro inteligente que seja de esquerda. Por este simples motivo: se era jovem quando Francis escrevia na Folha ou no Estado, só a burrice pode ter feito com que escapasse da influência dele. Devia ser um daqueles que ridicularizavam o modo com que Francis falava na Globo (o último exemplo de dicção aristocrática no Brasil, substituída pela perfeita dicção das classes esforçadas). Devia ter preguiça de passar da terceira linha de qualquer texto de Paulo Francis. Um burro. Perdão, não há outra palavra: um burro. É como ter sido jovem em Nova Iorque nos anos 20, e não gostar de Mencken, e continuar batista e anti-evolucionista.

Veja mesmo o caso do Digestivo. Leitores já reclamaram muitas vezes contra o que parece ser uma "ideologia" deste site: seríamos todos de direita. Isso já foi mais verdade do que é agora, mas façamos a concessão - digamos que sim, é um site de direita. Resta saber o motivo disso. É porque o editor recusa a entrada de qualquer um que seja de esquerda? Não - quando eu entrei, em nenhum momento ele perguntou qual a minha opinião política. Nem perguntou a ninguém. Coincidentemente, os colunistas eram anti-petistas, quase todos. Ou melhor, não coincidentemente - não, não há nada de coincidência nisso - mas pelo simples motivo de que é quase impossível encontrar pessoas de esquerda, com vinte e poucos anos, que escrevam bem. Eis tudo.

Esta é uma fase de ouro, na verdade, de escritores de oposição anti-Lula. Mais tarde veremos com saudade esta época em que gente como Juliana Lemos, Dennis, Martim Vasques, Fabio Danesi, Rafael Azevedo, Felipe Ortiz, Evandro Ferreira, Félix Felícato, Maria Inês de Carvalho, e outros, escreviam de graça, todas as semanas, e em alguns casos todos os dias, na Internet. É a sombra de Paulo Francis projetada na Internet, que ele odiava. Me agrada pensar que ele gostaria desses escritores.

(Há um em especial que não citei - dois, na verdade. Não menciono os nomes deles porque são almas discretas, que seriam capazes de me pagar para não receber links. Mas, aos curiosos, basta pesquisar com calma as seções de links nos blogs já mencionados. Não são muitos os blogs inteligentes, acredite - e os mesmos vinte nomes acabam aparecendo sempre - com os dois que não mencionei misturados ali).

Enquanto isso, com patética incompetência, os editores dos jornais impressos ignoram esses nomes, e preferem continuar publicando mais uma croniquinha de Mário Prata, mais uma reminiscência de Carlos Heitor Cony, ou mais um jornalista carioca contando, pela ducentésima vez, a história de quando o Antonio's foi assaltado e Hugo Bidê ficou trancado no banheiro. Ou qualquer coisa assim.

Pessoalmente, não aguento mais ouvir histórias de Hugo Bidê. Acho que ninguém mais aguenta. É só um jornalista da velha guarda abrir a boca, ou abrir o Word no computador, e lá lhe vem a tentação de usar o Hugo Bidê como se fosse o Ulisses da epopéia nacional. Sério, nos jornais já se escreveu mais sobre o Hugo Bidê do que sobre Aquiles. Nem sei direito quem foi o Hugo Bidê, mas eu o detesto, e acho que a menção do seu nome devia ser proibida em textos de cronistas sexagenários de passado boêmio. Começa o sujeito a escrever: "Me lembro que estávamos eu, o Antônio Mária, Sérgio Porto e Zizi Montparnasse numa mesa do Antonio's quando vimos vindo o Hugo Bidê..."- e pronto, perdeu o emprego. Patrulha contra Hugo Bidê. Muda de assunto, caramba!

Ah, sim, a esquerda. Estava falando da esquerda. Desculpem, mas como a esquerda é chata, preferi até falar do Hugo Bidê ("O porre canta, Musa, de Hugo..."). Bem, achem um escritor de esquerda, de vinte e tantos anos, que escreva bem. Não há. E no entanto acredite, a esquerda, representada por senhores de quarenta anos ou mais, continua pensando como se pensava na época heróica em que Vinícius de Moraes broxava e Hugo Bidê se trancava no banheiro: que todo humor é de esquerda, toda decência é de esquerda, e até mesmo que toda inteligência é de esquerda. Continuam presos num punhado de meses da década de setenta, quando Paulo Francis nem havia atingido o auge, as mulheres usavam um penteado ridículo, e opalas, fuscas e mavericks enfeiavam mais a orla de Ipanema do que todos os prédios atuais juntos.

Linhagens
Na verdade há uma divisão, nesses vinte e tantos blogs que mencionei, entre aqueles que foram diretamente influenciados por Paulo Francis, e aqueles que foram diretamente influenciados pelo filósofo Olavo de Carvalho. Mas mesmo os que foram influenciados por Olavo de Carvalho foram influenciados, indiretamente, por Paulo Francis.

Quem não foi influenciado por Paulo Francis? Os que eram burros demais para receber a influência. E os próprios amigos ou contemporâneos de Francis - que, se por acaso se esquecessem de quem foi Paulo Francis, e calhassem de ler as colunas velhas dele achando que se trata de um blogueiro qualquer, ficariam, sem dúvida, indignadíssimos. Rasgariam o jornal. Chutariam o computador. Reclamariam da falta de talento (e de coração) "dessa juventude alienada", que só quer falar de Wagner e Matisse e parece não dar valor "à inegável sinceridade de Lula".

Não consigo, na verdade, imaginar Paulo Francis arranjando um emprego em jornal, hoje. Na primeira dinâmica de grupo da Folha, assim que alguém jogasse uma bola gigante de plástico na direção dele, Francis levantaria, diria algo ininteligível à psicóloga mal-ajambrada (começando com "Olha aqui, minha filha...") e iria embora. Teria que escrever - adivinhe - em blogs.

Declaração de Princípios
Todo mundo deveria, em algum ponto da vida, fazer uma lista de pessoas que abomina. Serve como uma declaração de princípios. A minha é esta:

Hebe Camargo, Ivete Sangalo, Athaíde Patreze, Marcos Mion, Vampeta, Wanderley Luxemburgo, Lair Ribeiro, Núbia de Oliveira, Alexandre Frota, Eri Johnson, Roberto Cabrini, Maluf, Lula, Popó, Gugú, Sílvio Santos, Maurício Manieri, Nélida Piñon, Edir Macedo, Netinho, Ratinho, Oliver Stone, Sylvester Stallone, as Ninjas todas, Fernanda Torres, Miguel Falabella, Luciano Huck, Otávio Mesquita, Alicinha Cavalcanti, Narcisa Tamborindeguy - e você, aí, atrás da cortina.

Uma frase de Cioran
"O direito de suprimir todos aqueles que nos desagradam deveria figurar em primeiro lugar na constituição da Cidade ideal."

(Le droit de supprimer tous ceux qui nous agacent devrait figurer en première place dans la constitution de la Cité idéale.)

(no livro "Do Inconveniente de ter Nascido")


Alexandre Soares Silva
São Paulo, 15/11/2002

 

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