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Sexta-feira, 13/12/2002
A Voz do fogo
Gian Danton

Aqueles que, na década de 80, se espantaram com a forma como o escritor inglês Alan Moore revolucionou os quadrinhos com obras como Watchmen e Monstro do Pântano, sempre se perguntaram como ele se sairia sem o auxílio de imagens. Como seria Alan Moore escrevendo literatura? Para os que ainda guardam essa curiosidade, a editora Conrad está lançando A Voz do Fogo, o romance de estréia do mestre inglês.

O livro é uma experiência literária curiosa: contar várias histórias ambientadas no mesmo local, mas em períodos históricos diferentes.

O primeiro conto, O porco do bruxo, é, provavelmente o mais interessante e também o mais difícil de ler. Ele conta a história de um garoto abandonado por sua tribo quando da morte de sua mãe. Mas, veja só, a história se passa no ano 4000 antes de Cristo. Para representar o pensamento do rapaz, Moore criou uma linguagem, uma espécie de inglês primitivo. Essa parte do livro, especificamente, deve ter dado um trabalho hercúleo para a tradutora (vale a pena mencionar o nome dessa heroína: Ludimila Hashimoto Barros), que, no final, acabou se saindo bem. Ela optou por transformar o texto em um português tosco, sem tempos verbais e muito limitado em termos de pronomes. Um exemplo: "Agora olha eu para baixo, para a grama em fundo da colina, vê porcos. Porcos grandes, compridos, um atrás de outro, traçando a fêmea, pelo que parece. Ver faz um osso subir dentro de eu vontade. Eu e barriga de eu, junto, posso descer colina correndo até porcos, acertar pedra em um e fazer ele sem vida, para comer ele todo. Antes é eu juntando isso. Agora é fazendo isso".

Só por curiosidade: vontade é pênis. Pênis ereto é vontade com osso dentro. Pênis murcho é vontade pequena...

Difícil de ler, como se percebe, mas quem se aventurar descobrirá que vale a pena. Moore revela um impressionante conhecimento de antropologia. A tribo do rapaz é composta de nômades. Ao ser expulso (pois era preguiçoso para procurar comida), o rapaz acaba se deparando com uma outra tribo, que já conhece a agricultura (povo-que-fica, como define o narrador). A diferença entre as duas culturas é gritante. A tribo nômade não tem a menor noção de higiene, ao contrário dos habitantes da aldeia, que, inclusive, reservam um local apenas para necessidades fisiológicas. Além disso, enquanto os nômades passam quase todo o tempo procurando comida, o povo-que-fica, devido à agricultura, dispõe de tempo livre, e começa a usá-lo, inclusive, na produção de arte. Moore imagina até mesmo uma música, que seu garoto troglodita ouve de uma aldeã:

Oh, como agora posso achar companheiro , ele menino-de-viagem é diz
Em beira de vale alto, em escuro de árvore, perto de colina de minhoca-de terra e tudo
E deito com ela enquanto eu ainda não colocado em terra todo cinza
Em beira de vale alto, em escuro de árvore macio
Perto de colina de michoca-terra e curva de joelho de rio
E ali está deitada eles, ele e ela, em baixo de grama e tudo.

A segunda história é igualmente interessante, "Os Campos de Cremação", é uma história policial e de suspense ambientada no ano 2.500 antes de Cristo. Uma menina está viajando para conhecer seu pai, um bruxo de uma aldeia rica, quando se depara com uma viajante e compartilha com ela seu conhecimento sobre as riquezas do pai. A outra, uma esperta, que já havia feito de tudo, inclusive vender uma menina perdida da mãe como escrava, mata-a e se apresenta na aldeia, fazendo-se passar por ela. A grande questão é saber se ela será descoberta ou não. A todo instante Alan Moore nos mantém no fio de uma navalha, jogando com os nervos da personagem e dos leitores.

Os que se lembram da narrativa poética de Moore em Monstro do Pântano, certamente vão reconhece-la em A Voz do Fogo. Suas descrições são perfeitas e exatas, mas, ao mesmo tempo, deliciosas de ler. Um exemplo: "Folhas cor de bronze formam pilhas encostadas nas árvores que parecem viúvas, ombros expostos e curvados de desgosto, cabeças caídas e cabelos grisalhos tocando a superfície do rio, onde correntes formam orlas prateadas, divididas pelas pontas dos ramos".

As outras narrativas vão avançando no tempo, mas não mudam de lugar: Northampton, a cidade natal de Moore, é o cenário de todas as histórias, que terminam em 1995, tendo o próprio escritor como personagem.

A Voz do Fogo mistura magia, reencarnação e sacrifícios em histórias que, em conjunto, formam um grande romance. Na história Os Campos de Cremação, o velho bruxo tatua no corpo o mapa de Northampton e, assim, através da magia, seu corpo influencia na cidade e a cidade influencia em seu corpo. O mesmo ocorre com Moore, suas palavras são uma espécie de magia simbólica que influencia e é influenciada pela cidade. Compreender como isso funciona e descobrir as coincidências entre as histórias é um dos atrativos do livro. Muitas vezes, a conclusão de uma narrativa se encontra em outra narrativa. Além disso, há personagens fixos, como arquétipos, que surgem aqui e ali, permeando a narrativa. O esperto e o sacrificado são os mais visíveis.

Ler A Voz do Fogo não é fácil, em decorrência da complexidade da narrativa, mas compensa. Há muito tempo eu não devorava um livro tão rápido. Se você também gosta de literatura que exige reflexão, não deixe de ler.

Para ir além




Gian Danton
Macapá, 13/12/2002

 

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