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Terça-feira, 24/12/2002
O Ano Novo
Jardel Dias Cavalcanti

Olhou novamente para o apartamento para ver se algo ainda poderia estar fora do lugar. Caminhou pela sala com calma e meticulosa atenção. Pensou demoradamente, com a vigilância dos que vão embora, sobre cada objeto que seu olhar encontrava.

Fitou o espelho por apenas alguns segundos, pois temia encontrar seus pensamentos ali refletidos. Olhou o pequeno e único vaso de cravos e clematites que estava sobre a mesa naquela sala e lembrou-se do amigo que o havia presenteado, mas desviou o olhar, pois não queria pensar. O que lhe importava era ter a certeza de que tudo estaria no seu devido lugar, com uma organização impecável.

O fato de ter passado quase toda a sua vida como historiador, organizando dados e fatos históricos, o contaminou em todos os seus gestos e hábitos cotidianos. Meticuloso... era o que ele queria ser em tudo o que fizesse ou pensasse. Talvez fosse uma deformação, mas sempre ele pensava em termos de detalhes. Mas agora não queria pensar mais.

Continuou vasculhando a sala enquanto sentia o tempo afluir. Olhou para os discos, porém não ousou ouvir nenhum deles. Desviou o olhar. Eles estavam limpos, organizados e bem cuidados. Isso bastava naquele momento. E ele não queria mais pensar. Acertou, sob os seus pés, as dobras do tapete fitando-o por um momento e pensando no quanto gostava daquelas figuras geométricas ali estampadas. Criavam em sua mente a idéia de segurança. Olhou depois para os quadros na parede e quase se decidiu por trocá-los de lugar. O que importava era tê-los em uma ordem métrica ascendente. O menor embaixo e os outros subindo num crescendo. Na verdade, só observou o tamanho das molduras sem se preocupar com a qualidade estética de cada quadro. Decidiu deixá-los como estavam, pois obedeciam à ordem do seu pensamento. Já que estavam ali como ele queria, não mais pensou neles.

Virou-se. Deu com uma fotografia da família. Todos reunidos em uma comemoração qualquer. Pensou naquelas vulgares dependências naturais e mamíferas dos humanos comuns. Não era o tipo de relação que havia escolhido para si. Preferira as mais abstratas, imateriais, da qual não fazem parte os laços de sangue, de solo ou de clã. Estas eram mais sutis, clareando, contraluz, as promessas de sua vida. Talvez por isso vivesse só, em sua vida discreta e taciturna. Mas já pensara demais. O que queria era não pensar mais.

Ao olhar para a porta do seu quarto lembrou que ainda havia coisas por fazer. Os sapatos, os três que possuía, foram colocados na sapateira. Estavam limpos e bem preservados. Observar isso o fez descansar. Dobrou as últimas camisas que estavam passadas e que se encontravam sobre a cama. Cheirou-as, como sempre fazia, e guardou-as nas gavetas do guarda-roupa. Havia pensamentos inconfessáveis nestes gestos que lhe pertenciam. Mas não mais queria vertigens, não mais estados de alma. Não pensou. Verificou depois se as gavetas estavam em ordem. Abriu várias, detendo-se por mais tempo em uma delas onde guardava, dentro de envelopes, documentos pessoais, fotos e cartas. Não abriu nenhum deles. Não queria abrir nada para não pensar em nada. Desviou o olhar com um pouco de tensão e foi nesse entrementes que veio a dar com as vistas em um livro aberto ao lado do travesseiro sobre a cama. Foi direto a ele. Leu em silêncio as frases que estavam fortemente grifadas com caneta vermelha naquela página aberta: "Talvez o passado não exista... Talvez a verdadeira loucura dos homens é imaginar, como ele mesmo sempre fez, que existem em algum lugar, bem enfileirados ao longo da estrada, pequenos blocos de passado que visitaríamos um a um, com toda a calma, prestando atenção para não esquecer nenhum... Talvez o passado não é tanto quanto se pensa a fonte do futuro... Talvez haja futuros que não são a continuação de um passado... Um futuro antes de um passado... Passados sem nenhum futuro...".

Inquieto, lacônico na expressão, virou a página onde encontrou mais uma frase, agora duplamente grifada em vermelho. Leu-a: "O tempo de uma vida não é o tempo do tempo, ele obedece a uma lógica bem mais secreta e retorcida". Fechou-o num gesto rápido e o enfiou debaixo do travesseiro. Não queria se lembrar que havia pensado por tanto tempo. Depois foi até a janela de onde viu, acima do dia pálido, o céu da cor de brasa. Fechou-a, vendo a cidade desaparecer aos poucos diante de seus olhos. Esse gesto, mais a lembrança do que havia lido, fez nascer algum pensamento que parecia perturbá-lo. Tornou-se estiolado, tomado por uma falta de ar. Saiu do quarto imediatamente e se dirigiu à biblioteca.

A biblioteca era para ele a parte mais importante de seu apartamento. Não era à toa que ali a decoração era mais cuidadosa e requintada do que na própria sala. Os melhores quadros que possuía, e os que mais admirava, estavam na parede desta sala. Pequenos vasos antigos decoravam suas estantes de livros. O computador e fichários, minuciosamente organizados, existiam como instrumentos vitais de seu trabalho. Neste lugar ele passava quase todo o tempo de sua vida. Havia livros a serem lidos, artigos a escrever, provas a corrigir, tese por concluir, cartas a responder. Ali ficava também o telefone. Isso ele notou ao olhar para a pequena escrivaninha colonial que comprara com enorme satisfação em uma casa de antigüidades. Pensou então que já era o momento de ligar para seu amigo desejando-lhe um feliz ano novo. Foi o que fez.

Depois, dirigiu-se para as estantes de livros para verificar se tudo estava sistematicamente organizado e sem poeira. Passou a mão pela lombada dos livros numa relação de carinho apaixonado. Teve medo de pensar em abandoná-los ao deus-dará. Fraquejou por um instante ao pensar nisso, mas voltou a si limpando a mente de qualquer pensamento. Foi à escrivaninha, tirou da pequena gaveta o cheque e extratos de contas a pagar, colocou tudo no bolso e saiu da biblioteca com um ar meio desesperado. Atravessou a sala, foi até à porta, olhou para trás, certificou-se que tudo estava no seu devido lugar, minuciosamente organizado. Era isso o que lhe interessava naquele momento. Afastou de si qualquer sensação de frio. Saiu.

Atravessou as ruas com seu passo discreto, regular e tímido. Ninguém prestava atenção nele. Sozinho. Foi a um banco onde pagou contas de luz, aluguel e telefone. Passeou um pouco pelas ruas, olhou nas bancas revistas e jornais para sentir o pulso daquela época, mas não se interessou por nada. Parou em uma pequena padaria onde tomou café e acendeu um cigarro, ficando a observar as pessoas por trás de uma frágil cortina de fumaça, sem interrogar os rostos que via, sem pensar no sentido daquilo. Olhava apenas.

Voltou para casa quando o sol já agonizava em lusco-fusco. Descansou sentado na sua confortável poltrona com um cigarro que desmanchou entre seus dedos sem ter sido levado à boca. O olhar vagueava lentamente pelas paredes brancas. Não sentia sono, não sentia fome, não sentia tristeza. Tentou não pensar em nada. Acabou, enfim, pensando em si mesmo. Em sua vida. Em seu destino. Ele pensou no que foi. No que poderia ter sido. No que deveria ser, mas que não terá mais tempo para isso. Enquanto continuava sentado, num silêncio quase crispado, produziu-se nele um novo sentimento. O sentimento de estar banhado pelo tempo. Mas um tempo parado, cristalizado ou morto. Um tempo em que nada acontece, em que nada mais acontecerá e no qual ele tem o sentimento, no fundo, de nada ter acontecido. É como se a idéia que ele tem de hoje contaminasse a que ele conservava do passado. Afastou esta sensação. Não quis mais pensar. Observou a tarde cair como chumbo sobre o seu apartamento. Continuou mergulhado por longas horas num entorpecimento que quase não o deixava se mover. Permanecia mudo. O mínimo barulho, o mínimo tremor irregular. Lúgubre. Afásico, poderia se pensar. Mas mesmo assim levantou-se, pegou uma folha, escreveu um bilhete e colocou-o em um envelope que deixou aberto sobre a escrivaninha. Foi ao banheiro, desnudou-se, dobrou as roupas e guardou-as, cuidando para que não amassassem. Tomou um banho, vestiu seu pijama listrado, passou um pouco de perfume italiano, penteou-se e foi para o quarto. Observou que nada restava por fazer.

***


- "Estamos tendo uma bela noite!"

Palavras que disse a senhora do apartamento vizinho à sua pequena filha, que a ajudava no preparo da ceia para os amigos de seu marido que viriam para a virada de ano, quando assustou-se ouvindo um estalo vindo não se sabe de onde, que mais parecia uma explosão de foguete ou mesmo um tiro ou um pneu de carro explodindo. Não pensou mais nisso, pois o som logo desapareceu e o marido acabara de entrar dizendo a ela que já passara um minuto da meia-noite e que coisa chata essa de atrasar a ceia deixando as visitas esperando.

***


Ele havia se recostado no travesseiro olhando ainda por algum tempo o branco da parede de seu quarto. Ao bater da meia-noite, sem pensar em nada, colocou debaixo do braço o bilhete que havia escrito, fechou os olhos com uma leve pressão e, tocando o peito com o frio cano do revólver, meteu uma bala no coração, ensanguentando todo o pijama de seda. Precipitou-se oferecendo-se à morte como uma presa. No bilhete que deixou, e que foi encontrado dias depois, meio sujo de sangue ressecado, dizia apenas que a cabeça lhe pesava muito e que queria descansar.

O dia amanheceu com uma claridade metálica, quase cinza, banhado no perfume daquela carne em decrepitude. Naquele rosto desfigurado, devastado, um olhar moribundo, que não vê mais nada, que se volta para dentro e que já está absorvido pelo nada que o chama. Olhos levemente fora de órbita. Um olhar evadido de seu invólucro de carne. Chamava a atenção uma espuma no canto dos lábios, mas o olho é a última coisa que fica num rosto que se vai. Nenhum pensamento o sitiava mais.

Um novo ano se iniciava naquele momento. Para alguns, a espera por dias melhores. Para o silêncio daquele quarto de apartamento, apenas uma cama ensangüentada, com um corpo também ensangüentado, imóvel e se decompondo, apenas um cheiro desagradável que emanava de uma vida que se transformou numa ruína orgânica.

Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 24/12/2002

 

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