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Segunda-feira, 9/12/2002
Prata de tolo
Eduardo Carvalho

Mario Prata

Um dos piores escritores do Brasil - e, conseqüentemente, um dos mais lidos e admirados - é o Mario Prata. Seu sucesso seria um insolúvel mistério, se ele escrevesse sozinho entre miríades de cronistas competentes e talentosos. Mas não: seus companheiros de trabalho são quase sempre tão ruins quanto ele. O principal destaque de Mario Prata, na verdade, - e, talvez, o seu especial segredo - é que ele conjuga e potencializa alguns dos piores defeitos dos "melhores" cronistas do Brasil, sem agregar suas qualidades: a absurda ingenuidade política de Luis Fernando Veríssimo; a tediosa falta de assunto de João Ubaldo Ribeiro; a moleza opinativa de Ignácio de Loyola Brandão. E, de todos, a perspectiva umbigocêntrica do mundo, como se fosse capaz de transformar seus incômodos com um pernilongo em um caso engraçado e interessante. Mario Prata, camuflado por prêmios e defendido por fãs, continua sendo, para leitores atentos, um engodo evidente. Só o silêncio poderia esconder sua anemia imaginativa; mas ele decidiu ser escritor. Sua mediocridade, então, é indisfarçável.

É um recurso comum, entre cronistas que publicam regularmente, a encheção de lingüiça deslavada. Mais de dois parágrafos, muitas vezes, com reminiscências bobas e diálogos inúteis, em que fica evidente, para o leitor acostumado, a preocupação do escritor em simplesmente preencher espaço. Cony e Veríssimo, por exemplo, escrevem diariamente, e suas eventuais apelações são compreensíveis. E, mesmo assim, eles sabem controlar o estilo, que, quando o conteúdo é oco, é o que sobra. Cony e Veríssimo escrevem com facilidade e fluência, alternado com precisão, entre curtas e longas, o tamanho de suas frases, e suas palavras são adequadamente escolhidas - sabendo exatamente o efeito que pretendem e que provocam. As crônicas de Mario Prata, no entanto, saem semanalmente. São relativamente curtas, o que, no seu caso, é positivo - mas mais da metade do que escreve é completamente inútil, mesmo para justificar ou ilustrar uma situação ou sua opinião. A única sensação que seu texto pode eventualmente provocar em um leitor inteligente é a de que não é preciso ser inteligente para ser considerado escritor; basta saber enganar. E Mario Prata é um completo embuste.

Um escritor de verdade precisa cumprir, no mínimo, dois requisitos básicos, e em especial para escrever crônicas: possuir um estilo próprio e corrente; e, talvez ainda mais importante, ser um observador atento e alerta, capaz de perceber, em acontecimentos vulgares, alguma coisa de diferente, incomum. Ou seja: o escritor precisa combinar uma capacidade extraordinária de observação com uma formidável habilidade com o idioma, para colocar no papel aquilo que, para os seus leitores, não passa de impressão vaga e perdida. Ou, então, - se escrever como um jornalista apressado e observar como um mecânico ocupado - seu texto será completamente desprezível, reproduzindo opiniões convencionais e retratando a realidade comum. Não registrará, jamais, nada de novo: e a conclusão de seu texto será, com muita probabilidade, no mesmo estilo e com o mesmo conteúdo da última coluna do Mario Prata, "Doidas e doidos": "Seja doido você também! Façamos um país cheio de contentamento, feliz, encantado, com paixão, entusiasmo, incomum, extravagante, exageradamente doido e feliz."

Isso depois de, durante o início da crônica, dizer que os seus conhecidos são todos doidos, mas que ser doido, afinal, não é tão ruim assim. Porque, conforme o dicionário Houaiss, ser doido significa ser feliz - e, portanto, ele quis dizer, na verdade, que todo mundo é feliz. Não é lindo? Não - é, isso sim, extremamente chato. E escolhi sua última coluna por acaso mesmo, porque, se procurar outras, vou cair na mesma bobagem repetida: um elogio irrestrito aos Tribalistas, comparando-os, da forma mais infantil possível, com os tropicalistas; um diagnóstico estúpido, mas comum, das eleições: "Fora o voto dele (Serra) e da família, o resto votava era contra o Silva, contra o analfabeto, contra o metalúrgico, contra o homem do povo. Enfim, 30 milhões votaram contra o brasileiro natural e, portanto, contra o Brasil"; uma homenagem ao cantor Ray Conniff, que ilustra com perfeição sua incompetência arrogante: "Se você não sabe quem foi (é) Ray Conniff, me dá vontade de dizer que então você não viveu". Mario Prata está obviamente congelado no tempo: além de escrever como criança, distribui opiniões sempre baseadas numa nostalgia boêmia, alheia e pentelha ao leitor sensível. O seu assunto esgotou junto com a sua fórmula.

Não é necessariamente exigido, mas referências eruditas escapam com naturalidade de um escritor normal. Não é possível que alguém, que é ou pretenda ser escritor, desenvolva seus dotes naturais sem recorrer eventualmente a clássicos literários, ou, para apurar a sensibilidade, a música erudita, por exemplo. Citações e alusões, de vez em quando, são apropriadas, menos para exibir conhecimento do que para apontar exemplos - e Mario Prata as utiliza, às vezes até exageradamente. Mas quase sempre ridiculamente. Duas vezes, que me lembre, ele se referiu a escritores: Dostoievski e Rilke. Em relação a Dostoievski, reclamou que, depois de inúmeras tentativas, mais uma vez desistiu de ler Os irmãos Karamozovi, muito longo e muito chato. De Rilke, aproveitou seu indispensável mas manjado Cartas a um jovem poeta e, com a desculpa de ilustrar seu assunto, copiou trechos inteiros, completando metade da coluna. Houve outras, talvez - mas duvido que tenham sido diferentes: escritores, para Mario Prata, são ou o incômodo de suas férias ou a salvação de sua coluna - a não ser, é claro, que sejam seus amigos ou leitores. Em outra ocasião, aliás, e com outra desculpa esfarrapada, copiou cartas de seus leitores, preenchendo quase inteiro seu espaço no "Caderno2". Melhor assim, talvez - apesar da chatice insistente, Mario Prata conserva a virtude da brevidade.

Chatice que, por sinal, é sua preocupação recorrente. Mario Prata gosta de chamar os outros de chatos. Como se ele fosse, digamos, legal, porque alguém, há uns oitenta anos, disse a ele que escreve bem - e, diferente de outros escritores, sem ser chato. E ele acreditou. E decidiu ser escritor. E aprendeu, com dedicação, a fórmula necessária, que consiste na lembrança vazia de memórias boêmias com opiniões socialmente bacanas. Assumiu o estilo: que vai desde passagens por spas, com a intenção de largar o alcoolismo, até o descuido com os dentes, para preservar a imagem de desapego a questões estéticas. Funcionou - e agora serve, ele mesmo, como modelo. Não adianta, porém: não há sucesso profissional que mascare uma mediocridade tão óbvia. Mario Prata é, antes e mais do que tudo, justamente aquilo que ele sempre evitou ser: um escritor chato. Não vale, por cinco minutos, uma companhia na privada.

Eduardo Carvalho
São Paulo, 9/12/2002

 

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