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Terça-feira, 14/1/2003
De Ezeiza a Guarulhos
Marcelo Barbão

Parodiando Gilberto Gil: Buenos Aires continua linda. Essa continua sendo a sensação quando saindo da Autopista 25 de Mayo, data da revolução que marca o início do processo que levou à independência argentina, entro na Avenida 9 de Julio, a mais larga do mundo e o dia da declaração de independência.

Mas o dia que nenhum argentino irá esquecer é mesmo o 20 de dezembro. O dia em que o presidente De La Rúa foi obrigado a fugir de helicóptero da Casa Rosada, depois de ser o responsável direto pela morte de 30 argentinos em pouco mais de 3 dias.

A data é lembrada em diversas pichações nos muros da capital, mas também nos nomes das Associações de Bairro que foram criadas depois deste evento que eles adoram chamar de Argentinazo.

Hoje, a Argentina vive um impasse: está mais do que evidente que toda a baboseira neo-liberal de Estado mínimo, iniciativa privada, etc, defendida pelo FMI e pelo falido Fórum de Davos, não pode levar a nada. Na Argentina, esta política levada ao extremo significou que mais de 50% da população vive abaixo da linha de pobreza. Que o país regrediu alguns anos na sua história, voltando ao modelo agro-exportador. O sindicato dos metalúrgicos, dirigido por 33 anos por Dom Lorenzo Miguel, recentemente falecido, passou de 600 mil afiliados para 150 mil.

E ainda vemos gente defendendo este modelo. Só podem ser cegos e surdos. Sugiro um passeio pela Argentina, mas saindo dos bairros chiques e cult como Recoleta e San Telmo e vá para a periferia de La Matanza ou Morón. Talvez o melhor até seja uma volta por províncias como Santiago Del Estero, onde algumas cidades chegam a ter ¾ de sua população desempregada ou sub-empregada.

Mesmo assim, existem coisas que deslumbram neste lugar. Enquanto estive lá, pesquisei a situação cultural do país. Não há o que dizer, a crise é grande. Várias livrarias foram fechadas e 25 revistas culturais deixaram de sair neste ano de 2002. Vinte e cinco revistas? Apesar da tristeza disso, eu me pergunto: Será que o Brasil tem 25 revistas de cultura?

Em relação ao cinema e teatro, a situação está um pouco melhor. A quantidade de espaços para peças de teatro ainda é bastante grande na capital portenha. E seguindo a tradição européia e nova-iorquina, existem de todos os tamanhos.

É muito comum encontrar pequenos bares com palcos para peças curtas, monólogos e teatro alternativo. Novos atores e pequenas companhias (até mesmo amadores), podem se desenvolver nestes lugares. Além disso, os preços são baratos e acessíveis. Uma peça com a maravilhosa Norma Aleandro e o famoso Sergio Renán, baseado na vida de Bernard Shaw, pode ser assistida por apenas 10 pesos.

E o cinema, então? Todos acompanhamos as películas que vieram do sul. Filmes como Nove Rainhas, O Filho da Noiva e Plata Quemada, foram sucesso nas telas brasileiras. Mas, o melhor, infelizmente, não chegou por aqui: os cineastas argentinos estão desenvolvendo excelentes documentários sobre a situação do país. A história dos piqueteiros (ativistas desempregados que cortam as estradas por todo o país, reivindicando trabalho e políticas sociais), os cartoneros (novos mendigos que caminham pelas ruas de Buenos Aires revirando o lixo) e os movimentos sociais e políticos que nasceram desta situação, como o Movimiento Tierra y Libertad formado pelos sem-tetos ou o Movimiento de Trabajadores Desocupados Aníbal Verón.

Por todo os lados, entre estes setores que lutam contra o desemprego e a fome, a cultura está presente. É a saída de milhares de jovens que não encontram emprego mesmo depois de formados em boas faculdades. Entre os cartoneros, é possível encontrar advogados e até médicos. Essa conjunção de fatores levou a situações inéditas como o centro cultural criado dentro da empresa IMPA. A velha metalúrgica ocupada e dirigida pelos próprios trabalhadores desde 97, abriga o primeiro e único (até o momento) centro cultural formado dentro de uma fábrica em funcionamento. As repercussões foram internacionais: no ano passado o cantor francês Manu Chao foi visitar a fábrica e ficou deslumbrado. Além de artes plásticas, teatro e um espaço para cursos, os próprios trabalhadores iniciaram uma editora. O primeiro livro? El Camino del Fuego de Che Guevara, texto inédito em todo o mundo até o momento. E tudo isso no meio de enormes máquinas.

A IMPA é um exemplo em vários sentidos. Contra todas as lógicas dos receituários capitalistas, a empresa sobreviveu sem dono ou patrão e os trabalhadores, organizados em assembléias democráticas, conseguem ganhar salários mais altos hoje do que antes.

Mas é na literatura que eu tive boas surpresas. Qualquer um que me conheça sabe da minha predileção pela cultura latino-americana. E, nas banquinhas do Parque Rivadavia, é possível encontrar mais livros que em grandes livrarias de São Paulo. Desde clássicos como Borges, Cortázar, Rubén Darío, Roberto Arlt e, um dos grandes achados, Monterosso, passando pelos contemporâneos como Marcos Aguinis, Abel Posse, Tomás Eloy Martinez, Mario Benedetti e Antonio Skármeta, até chegar nos novos escritores como Martín Kohan, Leopoldo Brizuela, Alejandro Parisi e Diego Jará. Sem contar duas grandes descobertas como o primeiro livro do grande Macedonio Fernández.

Sim, a viagem terminou depois de apenas duas semanas, mas pelo menos, agora os leitores do Digestivo Cultural poderão, nas próximas semanas, conhecer estes fantásticos autores latinos e seus livros excepcionais. É só acompanhar esta coluna.

Bom 2003 para todos.

Marcelo Barbão
São Paulo, 14/1/2003

 

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