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Quarta-feira, 15/1/2003 O Direito à Estupidez Adrian Leverkuhn 1. Um amigo meu certa vez me observou que parecia haver dois tipos de estudantes de música: aqueles que tinham interesse em uma vastíssima gama de assuntos, e que poderiam atuar com razoável sucesso em virtualmente qualquer área, e aqueles cujos interesses se concentravam exclusivamente na música, e diziam que, se não fosse ela, não saberiam o que fazer da vida. Quase não se via uma zona de cinza entre os dois extremos. Não é muito difícil extrapolar esta observação para diferentes artes. Descontemos os grandes mestres e descobrimos, geralmente, que aspirantes a homens da renascença se dão tão bem quanto esteticistas que jamais demonstraram qualquer interesse em Hegel ou Schopenhauer. A fama da estupidez dos pintores, inclusive, foi dar origem à famosa expressão idiomática francesa "bete comme un peintre" - estúpido como um pintor (título, inclusive, de um quadro de Juan Davila que causou furor na bienal de Sydney de 82). Até mesmo na literatura, a mais discursiva das artes - e, imagina-se, aquela em que o interesse humanista mais se entrelaçaria com a estética - é possível encontrar romancistas bons ou muito bons que não tenham, em não-ficção, muita coisa a dizer: veja as banalidades das crônicas da Rachel de Queirós, por exemplo. A "estupidez" do artista não é necessariamente uma fraqueza: se é capaz de alcançar de ouvido, por assim dizer, os fins a que se propõe e alcançar o belo, não se deve exigir dele que seja capaz de bolar uma teoria estética ou uma análise seja lá de que tipo que fundamente o que acaba de fazer. A estupidez do artista é um direito. Claro que há muitas coisas de errado na arte contemporânea - um diagnóstico preciso, deixo para aqueles que tenham o conhecimento, a inteligência e o tempo livre para fazê-lo - mas muitas vezes me vem a impressão, em galerias, de que os artistas de hoje não são de qualquer forma inferiores aos de outras épocas, que não vivemos em um período de "decadência das artes" - de que se fala, aparentemente e sem interrupções, desde o próprio nascimento da arte - pelo menos no que concerne o talento de seus criadores: o problema é que esses artistas estão sendo forçados a pensar. Tem-se a impressão, de fato, que a obra não tem a menor importância, que qualquer coisa vale, que o importante são as justificativas teóricas por trás do que foi feito (ocorre-me neste momento à memória a bienal de São Paulo de 98, em que o guia no CD discorria longamente sobre uma tela vazia, e outra também vazia, mas com um corte no meio. Não me lembro se são de Rauschenberg ou de alguém que tenha "plagiado" sua originalíssima idéia de deixar a tela em branco.) - e o resultado, as bobagens que são proferidas para justificar sempre as mesmas obras, apenas explicitam a mediocridade estatisticamente necessária da maioria. Em outras épocas, os artistas menos dotados se dedicariam à imitação exaustiva dos padrões clássicos, fariam paisagens e naturezas-mortas passíveis, e sua incapacidade de conceber coisas novas ou notáveis ficariam camufladas sob sua proficiência técnica, visível apenas aos olhos de um observador mais atento. Uma instalação, performance ou obra "de vanguarda" medíocre berra sua mediocridade até o constrangedor. Você olha para a pessoa que você trouxe consigo à exposição e morre de vergonha. --- 2. Na literatura, o problema é ainda mais antigo: a coisa vinha desandando já no formalismo russo, no ideal de se criar um teoria "científica" do fenômeno literário. Não me entendam mal: eu acho louvável que se tente fazer um estudo rigoroso, ou o mais rigoroso possível, da literatura. Muitas vezes, ao ler uma passagem bonita de um romance ou um poema, eu sinto esta vontade de ter uma teoria que me explique, exatamente, o que está acontecendo naquele momento, que me diga como que eu sei que tal autor é melhor que tal outro autor, como versos diminutos e aparentemente simples podem conter em si tanta força de expressão. Os problemas nesta proposta são dois, e não advém propriamente dela: primeiro, que literatura não se faz a partir de teorias, principalmente de teorias inacabadas (da mesma forma que eu quereria uma teoria para o humor, seria um tanto tolo tentar criar piadas by the book, e a mera menção à teoria já estragaria o mais inteligente witticism); e segundo, as pessoas que se ofereceram a perseguir tal teoria, em sua maioria e em conjuntos mais representativos, não fazem a menor idéia de como uma teoria "científica" é feita. Observe os poetas concretos, por exemplo: seus assim chamados "poemas" dificilmente se enquadram no que se identifica, normalmente, como poemas, e dificilmente alguém seria capaz de argumentar com uma cara séria que eles sejam mais do que medíocres. Sua única força está em possuir uma teoria do poema - mind you, não do poema concreto, mas da poesia como um todo - por trás que, consistente à primeira vista, afirme que eles sejam poemas, e o que é ainda pior, poemas bons. Se uma teoria que visa explicar um fenômeno gera previsões de fenômenos completamente diferentes - no caso, uma teoria da poesia que gera palavras repetidas e trocadilhos previsíveis - é porque a teoria está errada, não os fatos. Não se joga o mundo fora. Ela pode ser perfeitamente consistente, em sua lógica interna, caso no qual ela pode servir como modelo para um fenômeno completamente diferente; a ligação com o mundo real - no caso, as obras que se identificam como poéticas - jamais pode ser perdida. Os concretos partiram de idéias boas - a insistência de Pound que poesia=condensare, e o comentário de Jakobson que toda literatura é metalingüística, por exemplo - mas em certo ponto se deixaram encantar a tal ponto pela teoria que estavam formulando que perderam o contato com o chão, deixando que sua quimera se desenvolvesse como ela queria, e não como ela deveria se desenvolver. A monstruosidade, naturalmente, não se encaixava com aquilo que deveria representar, e, neste ponto, ao invés de revisar o que deu errado, deu-se prioridade à teoria e não ao mundo real. O irônico é que se os irmãos Campos tivessem decidido aceitar os fatos da poética sem provas, ou se entendessem menos de semiótica - se tivessem, enfim, se concentrado no acerto-e-erro da técnica e resistido à tentação de teorizar, poderiam ter produzido uma obra muito mais interessante. --- 3. O que aliás vem justificar meu interesse (sempre meio hesitante, com ondas de encantamento e desencantamento) na cultura, por assim dizer, "popular". Meu interesse no impacto social da tecnologia pode ter sido um agravante: embora muitas das idéias fundamentais datem de tão distante no tempo quanto Aristóteles, eu só fui encontrar as narrativas que procurava, as vozes que diziam as mesmas coisas, em obras da cultura popular - na animação japonesa de Lain e Ghost in the Shell, na ficção de Philip K. Dick e Richard Powers, para citar alguns exemplos. Enquanto isso, os artistas sérios, aqueles que deveriam estar nos revelando tais visões, seguiam um modismo bobo em torno do "ciborgue", sem muito o que dizer, ou tentavam uma aproximação tangencial, tentando desviar do kitsch que ameaça uma representação explícita, direta. De certa forma, enquanto a arte com séculos de tradição parece estiolar-se sob a força da teorização pesada, as artes menores, que se enxergam essencialmente como entretenimento, começam lentamente a tomar o papel de repositório do verdadeiro pensamento e da cultura de um tempo. Uma receita de ironia, de nunca esquecer de sua própria irrelevância diante do mundo real e se lembrar sempre, não sem um certo sarcasmo, que o que se está fazendo é mero entretenimento sofisticado, entretenimento de luxo. É o que protege, muitas vezes, do ridículo a literatura inglesa e o jazz. --- 4. A proposta para o novo milênio é: menos teoria, mais prática; menos metafísica, mais técnica; menos falsa inteligência, mais alegre e sincera estupidez. Adrian Leverkuhn |
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