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Quinta-feira, 23/1/2003 Dos Lobisomens Ricardo de Mattos Este é um mito sempre a chamar-me a atenção. De tão difundido apresenta inúmeras variações e não é seguro apresentar uma lenda básica. Na Europa a transformação dava-se por feitiço, no Brasil predomina a crença n'uma maldição a acometer o homem nascido sob certas condições. Nem o termo "lobisomem" possui um uso unívoco, pois utilizado genericamente para qualquer assombração que implique n'uma metamorfose. Sendo assim, já vi sendo chamado por este nome aquele transformado em porco, jumento, bode ou cabrito montês. Interesso-me todavia apenas pela conversão do homem em lobo. Os gregos reservaram um lugar para o homem-lobo entre seus sátiros e centauros. Teria governado a Arcádia o tirano Licaon, cujos sacrifícios aos deuses consistiriam de vítimas humanas, mormente estrangeiros. Com o intuito de castigá-lo, Zeus visita-o incógnito e pede-lhe acolhida. Como refeição, o tirano serve-lhe os pedaços de uma criança morta. Indignado, o chefe do Olimpo destrói-lhe o palácio e transforma-o em lobo. Do grego lykos e anthropos - lobo e homem respectivamente - temos o vocábulo licantropia ao qual se voltará adiante. Entre os romanos, Plínio, o Velho, parece ter mencionado os lobisomens. Petrónio, no capítulo LXII de Satiricon, transcreve uma estória bem próxima do acreditado hoje em dia. Inclusive com a ferida feita no lobo e permanente no homem após a volta. Inobstante uma loba salvar e manter os gémeos fundadores da cidade, o animal não gozava de grande simpatia. Luperco - "o afastador de lobos" - é o equivalente latino do grego Pã, celebrado nas festas lupercais pelos sacerdotes lupercos e sua versão feminina é a deusa Luperca. Todos estes nomes e termos derivam de lupus - lobo -, palavra latina também aplicada aos ladrões. Sacrificava-se na Letónia uma cabra n'uma encruzilhada - repare-se no local - em honra aos lobos para, por seu intermédio, aplacar a cólera de Mezavirs, entidade silvestre. Já entre os lapões acreditava-se que o homicida inconfesso convertia-se em lobo. Este povo nutria tal horror pela espécie, que o imaginava criado pelo Diabo a fim de concorrer com o cão criado por Deus. Se lobisomens são apenas mitos, por que tantos homens foram acusados em tribunais pela prática de crimes sob a forma lupina e posteriormente executados? A resposta talvez seja a observação de doenças como a licantropia - ou licomania -, a hidrofobia e a hipertricose pela lente da ignorância e da superstição. Licantropia é uma perversão que faz o afectado julgar-se modificado em lobo - creio na abrangência de outras feras também - e passar a agir como tal, podendo até atacar e matar alguém. A hidrofobia é a conhecida aversão adquirida à água, cujos sintomas equiparam homem e animal. Tão impressionante quanto esta é a hipertricose, não pelo comportamento do enfermo, mas pela sua aparência, conforme vê-se na figura abaixo. Trata-se de um mal congénito, o indivíduo nasce com o corpo totalmente coberto de pelos. A lenda do lobisomem chegou ao Brasil pelos europeus. Apesar da presença do lobo-guará as tribos inventoras de lendas envolvendo transmutação recorreram à onça-pintada. Assim também os africanos trazidos para cá. Em terras brasileiras o mito difundiu-se do norte ao sul, fixando-se a figura do homem-lobo. Vez ou outra encontra-se uma inócua tentativa de inclusão do porco. A imprensa pernambucana tratou do assunto há poucos anos, mas é em São Paulo onde constantemente torna-se a ele, principalmente em duas cidades: Joanópolis e São Luiz do Paraitinga. Na primeira leva-se o tema jocosamente, e dele extraem-se consequências turísticas e económicas. Já na segunda, o caso é mais sério. Algum vagabundo, sozinho ou em bando, conseguiu assustar os habitantes desta pequena cidade histórica. De facto, muitos os que se não entrosam com o forasteiro sem antes e discretamente examinar-lhe as mãos e a aparência geral. As mãos são observadas pois trarão calos e feridas caso a pessoa tenha transformado-se em bicho recentemente. Os ânimos parecem mais calmos, porém basta um cachorro do mato - ou mesmo um doméstico refeito à vida selvagem - atacar um galinheiro para todos repetirem seus "causos" e acautelarem-se. Este medo manifesta-se pelos séculos. Quem vira lobisomem é o sétimo filho homem de um casal - se não baptizado pelo primogénito - ou o fruto do incesto. Como se vê, em solo nacional predomina a crença da maldição inata, sem recurso à feitiçaria mencionada na vertente europeia, inda que se aceite o contágio. O homem marcado tem pouco ou nenhum convívio social, raramente visto durante o dia, muitas vezes celibatário, sua aparência é esquálida, doentia e a pele ou muito amarelada, ou pálida. A primeira transformação ocorre na primeira terça ou sexta-feira imediata ao aniversário de treze anos. O homem passará então a cumprir sua sina toda sexta-feira, até o final da sua vida ou quebra do mal. Em torno da meia-noite, o infeliz procura um chiqueiro, galinheiro ou estábulo onde possa esfregar-se no esterco. Alguns falam em terreno no qual um cavalo ou jumento tenha espojado, e outros ainda explicam que este local deve ser próximo a uma encruzilhada. Não acredito em alguma relação, mas esta encruzilhada remete-nos ao já referido local de holocausto dos letões. Perfeito o lobisomem, resta-lhe completar seu fadário. Entre a meia-noite e o amanhecer, deverá o condenado correr sete igrejas, sete vilas, sete encruzilhadas, e sete cemitérios. Este o roteiro básico, embora haja quem lhe aumente o número dos locais de peregrinação. Percorre o trajecto sozinho ou acompanhado por uma matilha de cães a acossarem-lhe. Anda em duas ou quatro patas. A descrição mais comum é a de um cão disforme, do porte de um bezerro, com a pelagem variando do preto ao amarelo escuro - e aqui, dependendo do lugar, o lobo-guará pode ter servido de modelo para a mistificação -, longas orelhas batendo sob o queixo, grandes garras e dentes cujo rangido assemelha-se a um morder de ossos. Olhos injectados e o indefectível uivo. Se surpreendido ou perseguido, ataca. Após sua ronda nocturna, o lobisomem deve voltar ao lugar onde ocorreu a transformação para readquirir a forma humana, seja para fechar um ciclo, seja tão somente para recolher suas vestes. Quem tiver coragem pode emboscá-lo para matá-lo ou quebrar o mal. Para tanto, utiliza-se uma arma branca ou descarrega-se-lhe em cima balas especialmente preparadas. A bala de prata é um romantismo originado no cinema; a prata carrega a lenda de anular os efeitos d'um veneno, epor extensão, do encantamento. O "correcto" é embeber-se a bala na cera de uma vela queimada em três missas seguidas de domingo ou em uma Missa do Galo. Não é bom ter contacto com o sangue dele, para não contrair o mal, segundo crêem algumas pessoas. A concubina de um padre, ou sua sétima filha também são amaldiçoadas. Curiosamente, não se transformam em mulheres-lobas, mas ou em porcas a cumprir sua sina acompanhadas de sete leitões - talvez a encarnação de sete demónios -, ou em "cumacanga", ou ainda na mula sem cabeça. A cumacanga, ou curacanga, é mais popular no Norte e Nordeste do país: acredita que a cabeça da mulher abandona o corpo e sai sozinha pelas noites. Encontrei um conto de Raymundo Magalhães, O Lobisomem, em que a amásia de um padre vira lobo. Câmara Cascudo colige em Contos Tradicionais do Brasil uma versão da Bela Adormecida no qual a mãe do príncipe que livra a menina do sono secular transforma-se em lobisomem. Desnecessário dizer da presença do lobisomem no cinema. Muitos filmes desde The Wolf Man, de 1941, com Bela Lugosi até os mais novos. Na música, cito a Canção do Lobisomem, de Guinga e Aldir Blanc: "Eu sou inquieto assim pra dar um corte E no elo entre a satisfação e a morte Sou o ofício secreto do veneno Corroeno o amor - Deus o tenha! Como disse Drummond (mais que epopeia) "Essas flores no copo de geléia" me alucinam "Essa lua, esse conhaque" e o mar - O que mais quero Quando não espero é Deus que dá! Minhas unhas em garras transformadas Rasgam a roupa da virgem apavorada Meia-noite a ao romper aquela porta Que a separa de mim, ela tá morta! Não dá pra entender Essa angústia é boa companheira Da conversa entre o Príncipe e a caveira Deduzi que a esperança É uma besteira corroeno o amor - Deus o tenha! Entre amar e matar não sobra espaço: Quantas lâminas rente ao meu abraço E cristais de arsénico em meu beijo Vão matar o que mais quero Quando não espero é Deus que dá Nem a cobra coral, nem mesmo a naja Dão bote da prata que viaja Numa bala entre a arma e o meu peito Acho graça em desgraça Dito e feito: sou meu matador." Como mísero exemplo serve. Tenho em casa um exemplar de O Lobisomem Encantado, amostra única e portanto irrelevante perto do que a literatura de cordel deve ter produzido. E não é um volume dos mais típicos também, sua edição é muito "caprichada". Não se pode esquecer do lobisomem de Roque Santeiro, e posso afirmar ter iniciado muito bem o ano com a leitura de O Coronel e o Lobisomem, do fluminense José Cândido de Carvalho (1.914/1989). Procurei a obra por causa desta coluna e fica a questão: por que no-la encontrei antes? O mais sincero humor vaza das páginas, sucedendo-se situações e cenas hilárias e muitíssimo bem imaginadas pelo autor, como aquela na qual o coronel é apresentado ao matador contratado contra ele: "Então, de peito aberto, mandei que José Mateus apertasse o gatilho: - Atira, seu filho de uma égua, que a peça é de segurança. O povo, em derredor, espalhou a perna no medo de pegar bala vadia e muito sujeito correu para trás de porta. O enfezadinho, sem força nem para segurar a arma, veio cair junto da minha montaria ajoelhado. Contou que devia uns adiantados a Cicarino e o aguardenteiro, de cima dessa prevalência, ameaçou trancar os restos de seus dias no fundo da cadeia. Visse eu que ele possuía ninhada de moleques e não sabia, desde mês, o que era gosto de gordura. E mostrou o peitinho afundado, onde aparecia o reco-reco das costelas: - Tenha dó, coronel, tenha pena deste sofredor. Não agüentei - e caso José Mateus relatasse nova remessa de miséria eu era Azeredo de dar ao necessitado a camisa do corpo e toda a pecúnia do bolso. De coração compadecido, mas ainda em berro autoritário, mandei que ficasse de pé: (...)" A obra tem o seguinte subtítulo: "Deixados do Oficial Superior da Guarda Nacional, Ponciano de Azeredo Furtado, natural da Praça de São Salvador de Campos dos Goitacazes". Portanto, é a autobiografia do aludido coronel, escrito numa linguagem cómica pelo emprego de neologismos e palavras utilizadas fora de seu significado corrente. O talento do escritor revela-se por não ser ele repetitivo, não exagera nas variações de linguagem como se fizesse questão de sua percepção. O estilo é ágil e causa pena ter encerrado a leitura. Há uma barriga no livro a partir da ida de Ponciano à cidade, mas nada muito prejudicial. Contudo a obra não tráz acrescimo algum em relação ao mito, sendo a luta com o lobisomem uma cena a mal ocupar um capítulo. Ricardo de Mattos |
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