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Terça-feira, 21/1/2003
Tristes junhos
Marcelo Barbão

Há dois temas recorrentes na nova literatura argentina: a sangrenta ditadura militar que arrasou toda uma geração e a crise que deu ao país níveis nunca antes vistos de pobreza.

A ditadura "depurou" milhares de jovens universitários, professores e intelectuais. Nos anos 80, milhares de livros foram escritos sobre esse período. Contando histórias de militantes, fazendo levantamento histórico ou sociológico, a ditadura foi devidamente documentada. E, ao contrário da nossa ditadura, em geral já sepultada na mente dos brasileiros, os argentinos ainda não podem enterrar seus mortos e limpar suas feridas. São 30 mil desaparecidos, algo um pouco demais para "deixar para lá".

Mais recentemente, surgiram novos escritores que eram crianças naquele tempo sombrio. Assim, suas visões, mesmo quando militantes, tentam perceber novos sentidos para o que ocorreu.

E, de vez em quando, belas histórias podem surgir como o livro Dos Veces Junio, de Martín Kohan que optou por contar a ditadura pela visão de um simples conscrito, cuja função é a de assessorar um médico. Ocorre que os médicos, neste momento, são personagens-chave para a ditadura. São eles que dizem aos torturadores os limites dos prisioneiros (claro, quando vale a pena mantê-los em busca de novas informações).

O livro de Kohan faz uma narrativa que junta dois junhos especialmente importantes para os argentinos: o de 78, quando a conquista do primeiro Mundial servia para esconder os gritos de tortura que emanavam dos porões; e o de 82, quando o país sofria a mais vergonhosa derrota militar da sua história, depois da aventura das Malvinas. Aliás, esta resenha, sem querer foi escrita na mesma semana em que o "autor" desta barbaridade faleceu, o general Leopoldo Galtieri. Não há motivos para lágrimas.

No livro, o jovem soldado precisa encontrar o Doutor Mesiano. Era urgente encontrá-lo, afinal as autoridades superiores precisam de uma resposta a um questionamento essencial para a segurança da nação. O soldado, assessor e motorista parte então em busca do médico. Triste porque o médico abandonou o batalhão sem ele e sem falar para onde ia.

Mas,toda Buenos Aires converge naquele dia para somente um lugar: o estádio de futebol. Em plena Copa do Mundo, onde a Argentina é favorita (aliás, segundo as más línguas, foi um grande golpe de marketing contra os inimigos da ditadura), a derrota vem no jogo contra a Itália.

Esperando do lado de fora, o soldado comunica ao Dr. Mesiano a pergunta tão importante: "a partir de que idade se pode começar a torturar uma criança?". O que ele não conta ao médico é que já havia respondido esta pergunta momentos antes, quando questionado por seu sargento: "A partir do momento em que a Pátria tenha necessidade".

Assim, como uma questão filosófica, como um jogo de adivinhação, esta pergunta ressoa pelos corredores silenciosos e limpos dos porões, onde o soldado consegue ouvir alguns sussurros vindos dos torturados. Deixado sozinho, enquanto o doutor resolve este problema técnico, por baixo das portas, entre o cimento gelado, este conscrito ouve coisas que preferia nem saber que existe. São vozes que repetem algo que ele sabe ser verdadeiro mas, ao mesmo tempo, não quer lembrar: "Você não é um deles". Até que responde, aos gritos: "E como, caralho, você sabe quem sou eu, sua cadela filha da puta?". Reação natural de alguém com medo ou rito de passagem para se tornar um deles?

A pergunta que o Dr. Mesiano precisa responder, leva a outra ferida argentina ainda não fechada: os filhos dos desaparecidos. Os torturadores querem usar o bebê recém-nascido para obrigar a mãe a falar. O bebê acaba adotado pela família do médico.

Kohan usa de ironia e metáforas para reconstruir a ideologia por trás do militarismo, dando voz a personagens menores, tentando mostrar como não existe nunca uma visão geral das situações e como os grandes quebra-cabeças são montados a partir de pequenas peças.

Martin Kohan é professor de Literatura na Universidade de Buenos Aires. Este é seu quarto romance.

Para ir além
Dos veces junio
Martin Kohan
Editorial Sudamericana
189 páginas

Marcelo Barbão
São Paulo, 21/1/2003

 

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