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Quinta-feira, 6/2/2003 Da Poesia Na Música de Vivaldi Ricardo de Mattos Se a produção foi de tal porte, onde as partituras, cujo volume deve ser imenso? Muita coisa já foi gravada e colocada à disposição do público apreciador, mas é incalculável o que resta guardado nos arquivos de palácios, igrejas, mosteiros e universidades. Vez por outra, um nome diferente é apresentado: Benda, Milisvecek, Veracini, Viviani. Ora são grandes compositores com muita obra a ser descoberta, ora são compositores menores dos quais são seleccionadas as obras mais expressivas. Mesmo os considerados maiores não têm divulgada a totalidade de suas obras. Até procurei, mas não encontrei nenhuma gravação da ópera Rodelinda de Haendel, composta em 1.725. Ela existe, ele um dia teve o trabalho de compô-la. Sua "extinção" presente é devida a várias causas, principalmente de mercado, visto o público sempre procurar as mais populares. O resgate e execução de peças por curiosidade é algo a não se verificar tão cedo. Rousseau foi músico e teórico musical, mas não sabia ter ele composto em 1.752 a ópera Le Devin du Village - O Adivinho da Aldeia - e ouvi-la é algo com o que não conto ainda nesta vida a findar-se. Repare-se, portanto: a demanda de séculos promovida por chefes eclesiásticos ou de Estado empurrou para o esquecimento compositores como Bach, e Vivaldi. No último dezembro, comentei o Oratório de Natal do primeiro, assombrando-me nas pesquisas com um dado: tal composição pode ter sido executada apenas uma vez em sua vida. Apenas naquele Natal de 1.734. Morto em 1.750, sua obra só veio de novo à luz no século XIX por empenho de Felix Mendelssom (1.809-1.847). Rastreando o percurso feito por Bach em vida e visitando-se as cidades onde morou, trabalhou e leccionou, os pesquisadores com acesso aos seus manuscritos repararam no grande número de transcrições feitas por ele - principalmente para o órgão - das peças de um compositor italiano até então obscuro: Antonio Vivaldi (1.675- 1.741). Antes do aprofundamento das análises, até da acusação de plágio o músico alemão foi vítima. Vivaldi é o autor dos quatro famosíssimos concertos conhecidos como As Quatro Estações. Estes concertos foram publicados em 1.725 com mais oito n'um conjunto único conhecido como Opus 8. "Opus" é um termo latino que, acompanhado de um número, indica a ordem de publicação da obra de um compositor. Opus 8, por conseguinte, foi o oitavo grupo de peças de Vivaldi, publicado com o título "Il Cimento dell'Armonia e dell'Invenzione", algo como "Experiência de Harmonia e Invenção". Aqui o termo "Invenção" afasta-se do sentido comum de engenho, imaginação para significar o desenvolvimento contrapontístico de um motivo simples. As Quatro Estações merecem a fama. Porém sua apreciação poderia ser muito melhor se juntamente com as gravações fossem divulgados os sonetos que lhe servem de complemento. Não é preciosismo inútil: trata-se do melhor entendimento e fruição da obra, adicionando-se importante elemento para alcançar as cenas imaginadas por Vivaldi. São quatro sonetos, um para cada concerto. Talvez os ouvintes lessem-nos durante a execução, talvez alguém recitasse-os ao público adequando-os ao desenvolvimento da música. O casamento entre poesia e música é tão perfeito que se reforça a presunção de autoria em relação a Vivaldi. Entusiasmado com essa união, o pintor Jean von Blasenberghe teria preparado quatro telas, infelizmente não localizadas para este texto. Acrescentei outros quadros e ainda que de pintores pertencentes a épocas diversas e adeptos de estilos diferentes, foi possível ater à fidelidade temática. É muito comum que um CD venha acompanhado de alguns dados sobre o compositor, sobre a obra e algumas notinhas tentando substituir a poesia original ocorrendo aqui um desserviço. As incluídas no meu CD fogem ao espírito autêntico. Os sonetos, em tradução livre: A Primavera Chegada é a Primavera e festejando A saúdam as aves com alegre canto, E as fontes ao expirar do Zeferino Correm com doce murmúrio. Uma tempestade cobre o ar com negro manto Relâmpagos e trovões são eleitos a anunciá-la; Logo que ela se cala, as avezinhas Tornam de novo ao canoro encanto. Diante disso, sobre o florido e ameno prado, Ao agradável murmúrio das folhas Dorme o pastor com o cão fiel ao lado. Da pastoral Zampónia ao Suon festejante Dançam ninfas e pastores sob o abrigo amado Da primavera, cuja aparência é brilhante. O Verão Sob a dura estação, pelo Sol incendiada, Lânguidos homem e rebanho, arde o Pino; Liberta o cuco a voz firme e intensa, Canta a corruíra e o pintassilgo. O Zéfiro doce expira, mas uma disputa É improvisada por Borea com seus vizinhos; E lamenta o pastor, porque suspeita, Teme feroz borrasca: é seu destino [enfrentá-la]. Toma dos membros lassos o repouso O temor dos relâmpagos e os feros trovões; E de repente inicia-se o tumulto furioso! Ah! No mais o seu temor foi verdadeiro: Troa e fulmina o céu, e grandioso [o vendaval] Ora quebra as espigas, ora desperdiça os grãos [de trigo]. O Outono Celebra o aldeão com danças e cantos O grande prazer de uma feliz colheita; Mas um tanto aceso pelo licor de Baco Encerra com o sono estes divertimentos. Faz a todos interromper danças e cantos, O clima temperado é aprazível; E a estação convida a uns e outros Ao gozar de um dulcíssimo sono. O caçador, na nova manhã, à caça, Com trompas, espingardas e cães, irrompe; Foge a besta, mas seguem-lhe o rastro. Já exausta e apavorada com o grande rumor, Por tiros e mordidas ferida, ameaça Uma frágil fuga, mas cai e morre oprimida! O Inverno Agitado tremor traz a neve argêntea; Ao rigoroso expirar do severo vento Corre-se batendo os pés a todo momento Bate-se os dentes pelo excessivo frio. Ficar ao fogo quieto e contente Enquanto fora a chuva a tudo banha; Caminhar sobre o gelo com passo lento Pelo temor de cair neste intento. Girar forte e escorregar e cair à terra; De novo ir sobre o gelo e correr com vigor Sem que ele se rompa ou quebre. Sentir ao sair pela ferrada porta, Siroco, Borea e todos os ventos em guerra; Que este é o Inverno, mas tal, que [só] alegria porta. Ricardo de Mattos |
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