|
Quinta-feira, 6/2/2003 Kurosawa Maurício Dias Aos 26 anos teve a oportunidade entrar nos estúdios da PCL, associados à famosa produtora Toho. Trabalhou alguns anos como assistente de direção e roteirista. Durante a Segunda Guerra Mundial dirige seu primeiro filme, "A Vida De Um Lutador De Judô". Em 1949 dirigiu pela primeira vez o - então jovem - ator Toshiro Mifune. Muitos dos grandes diretores de cinema estabeleceram um ator como sendo seu alter-ego em muitos de seus filmes. São famosas as dobradinhas Billy Wilder/Jack Lemmon, Fellini/Mastroianni, John Ford/John Wayne, mas creio que nenhuma terá sido tão fecunda e produtiva quanto a de Kurosawa com Mifune. Tudo o que se disser de bom sobre as interpretações nestes filmes ainda não será o suficiente para esclarecer o nível de excelência aí alcançado - para isso, só vendo os filmes. Aos não familiarizados, a interpretação de Mifune poderá causar em alguns momentos uma estranheza, pois muitas vezes são acompanhadas de gritos e gesticulação excessiva, tradições do teatro japonês. Mas do patético Ronin inábil de Os Sete Samurais ao ganancioso e possesso nobre que aspira à coroa em Trono Manchado de Sangue, pode-se notar uma fúria e inquietação artísticas que no cinema ocidental talvez só tenham paralelo nas interpretações de James Cagney em Fúria Sanguinária (White Heat, 1950, de Raoul Walsh) e James Dean em Vidas Amargas (East Of Eden, 1955, de Elia Kazan - de quem ainda iremos falar.). A parceria se estendeu por dezesseis filmes, tendo sido lamentavelmente encerrada devido a uma cisão pessoal durante a filmagem de Barba Ruiva, em 1965. Por este filme o ator ganhou o prêmio de interpretação em Veneza, como já havia feito em Yojimbo, em 1961. O sentido pictórico de Kurosawa é inegável. Ao escrever sobre seus filmes, algumas de suas grandes cenas vem à mente: a agonia do nobre cravado por dezenas de flechas - chega a parecer um ouriço - ao final de Trono Manchado de Sangue; a casamata em chamas em Ran, onde o velho senhor feudal enlouquece, e, em meio ao ardor da batalha atravessa as linhas inimigas e vai a um campo colher flores; o menino retardado que acha que é um trem em Dodeskaden, e percorre trilhos imaginários em meio a um cenário miserável e devastado; tudo em seus filmes é grandioso. O humanismo de Kurosawa transborda na tela, muitas vezes explodindo sob a forma de violência, especialmente nos épicos, seja numa visão mais contemplativa e lírica, em filmes como Dodeskaden e Viver. "Viver" (1952) mostra o tema kafkaniano do indivíduo contra a burocracia do sistema, embora traga-a para uma ambientação muito mais real, ao mostrar um velho funcionário público que, ao descobrir que tem pouco tempo de vida, decide fazer algo pela comunidade e usa de todas as suas forças para tentar construir um parque. Nestes filmes, vemos uma grande compaixão e identificação com o sofrimento humano, mas em nenhum momento se faz pieguice ou exploração da miséria. Fica a sensação de como o homem é pequeno perante o mundo e seus desígnios, maravilhosamente expressa numa cena de um de seus últimos filmes, "Rapsódia em Agosto": um velhinho tenta caminhar em meio à uma tempestade, e o vento quebra as hastes de seu guarda-chuva, deixando-o sem nenhum abrigo. Para Kurosawa, o homem está só e desamparado em sua jornada, e é digno de compaixão. Como o cego na maravilhosa cena final de Ran - feito quando o diretor já tinha mais de 70 anos -, que tateia com sua bengala à beira de um abismo. Ran tem as mais belas cenas de batalha de todos os tempos, a coreografia e a cenografia - são fundamentais as bandeiras e estandartes que tremulam ao vento, carregados pelas tropas de cavaleiros que se chocam em ondas contínuas - se combinam, produzindo um conjunto de beleza e movimento assombrosos, para depois nos mostrar o horror que há em toda aquela ação, cujo único objetivo é eliminar o adversário. Como muitos grandes artistas, Kurosawa é melhor apreciado fora de sua terra natal. No Japão, seus gostos pela literatura ocidental - Shakespeare, Dostoievski, Gorki, todos adaptados por ele para o cinema - sempre foram contrários ao forte ideal nacionalista nipônico. Problemas pessoais e dificuldades econômicas da indústria de cinema japonesa levaram o diretor à uma tentativa - felizmente frustrada - de suicídio em 1970. No final da década de 70, alguns cineastas ocidentais, fãs confessos, como Coppola e George Lucas, reuniram-se para viabilizar um filme do mestre, o belo Kagemusha (1980), que trata dos temas do duplo e da inversão de papéis ao mostrar um pobre coitado que, devido à semelhança física é escolhido para substituir o rei recém falecido. A dobradinha com os ocidentais continuaria pelo filme seguinte, o soberbo Ran (co-produção nipo-francesa), adaptação do Rei Lear de Shakespeare. Aqui, vou entrar numa área meramente especulativa. Motivos menos nobres que a admiração artística pode ter levado o cinema americano a financiar os projetos de Kurosawa. Seu filme anterior a Kagemusha, Dersu Uzala (1975), foi uma co-produção russo-japonesa. Talvez autoridades americanas temessem a aproximação de um cineasta extremamente talentoso das forças do inimigo - ainda estávamos na Guerra Fria; em 1980 os EUA liderariam o boicote internacional às Olimpíadas de Moscou. O governo americano tem plena consciência da poderosa arma de propaganda que é o cinema. Através dele venderam ao mundo todo os conceitos de calça jeans e hamburgueres, e mais que isso, o ideal do american way of life. Embora Kurosawa não tenha nunca sido um artista de temas politizados, exemplos anteriores, como o do cineasta russo Sergei Eisenstein e a alemã Leni Riefenstahl, mostram o poder desta mídia nas mãos de alguém com talento. Kurosawa morreu em 1998. Foi o maior pintor e poeta que o cinema já teve. Maurício Dias |
|
|