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Segunda-feira, 14/4/2003 Rodrigo e a guerra André Pires -Pai, vai começar! - grita Rodrigo da sala, sentado em frente à TV da sala, com um enorme balde de pipocas no colo. O pai tira o terno com calma e coloca o pijama devagar, já havia dito pra ele que essa disputa não tem graça. Esse jogo já está definido antes de começar. A superioridade de um dos lados é evidente, são muito mais experientes nesse tipo de confronto. Mas ele nasceu em 93; com 10 anos agora, é a primeira vez que vai acompanhar uma guerra de verdade, ao vivo pela televisão. Quando o bicho começou a pegar e uma rede de Portugal deu o furo com uma câmera que tremia mais pela deficiência técnica do que pelo choque das bombas, logo viu que boa coisa não vinha por aí. O pai chega então na sala e senta no sofá ao lado do filho. - Isso aí não tem graça. Desde o começo eu te disse: "É muito interesse por trás." Não sei como não foi decidido no tapetão. - Você já me explicou pai. O Bush disse que o Sadam não respeitava a ONU aí ele desrespeitou a ONU e invadiu o Iraque.- sentencia Rodrigo, com a autoridade de quem vem acompanhando a Guerra 24 horas na televisão, recorrendo à Rede TV se for necessário. -É mais ou menos isso. - O pai não tem mais paciência para as imagens frias e os discursos tendenciosos que se repetem em todos os canais. Se já não bastasse o videogame ainda tinha que aturar isso agora. Já não sabia mais o que era guerra e o que era jogo quando chegava em casa e se deparava com o filho, olhos vidrados na TV que piscava bombas luminosas em uma tela verde escura. E estava cada vez mais difícil explicar as arbitrariedades, as quebras de regras e os desmandos daquele conflito. Mas era seu papel de pai, resignava-se. Era seu dever passar para o filho os valores morais e humanos que um homem deve prezar, mesmo em meio ao absurdo da guerra. Era sua obrigação responder a todas as perguntas de seu filho. - É como se fosse o Big Brother, né pai? Tem a prova do líder, disputa pela comida... Na medida do possível, é claro. Pior foi quando Rodrigo quis entender o motivo daquele conflito. - Como os americanos dizem: é porque o Iraque possui armas de destruição em massa.- afirmou categórico o pai. - E porque são os Estados Unidos quem decide que vai ter guerra? - Bom , porque eles são ma... - Só o Iraque tem essas armas? - Não, mas o Sadam já.... - Porque eles falam tanto em petróleo, pai? - Calma moleque! Presta atenção. Ele vai atacar o Iraque porque teme que o seu presidente possua armas que possam causar danos ao mundo. É uma guerra preventiva, como diria Hitler. - Ah... é como se o juiz marcasse o pênalti no meio de campo achando que o jogador vai cair na área. As vezes não dá para escapar. O pai pensa nas diferenças de seu tempo. Na sua época é que era guerra. Tá certo que não era ao vivo, mas eram os soldados com a câmera na mão que tinham que improvisar de repórter, e não o ridículo oposto que se via agora. Os aliados não eram uma dupla, e contavam com o apoio do mundo todo... - Pai, hoje mostraram os prisioneiros dos dois lados. O Bush falou que aquilo era contra o tratado de Genéra. - Genebra. - Ou isso. Porque é que eles mostraram os prisioneiros iraquianos então? Seria difícil explicar que para os fanáticos da direita cristã americana os fanáticos iraquianos islamitas eram caricaturas de seres humanos, seres bizarros de culturas estranhas, quase bichos, sem nenhum valor. Pior ainda fazer o menino entender que os americanos que apóiam a invasão nem sabem onde fica o Iraque, e que apoiaram seu país da mesma forma quando este treinou outros fanáticos terroristas para atuar contra a ameaça da vez: o temido comunismo soviético. Incluindo aí o arqui-inimigo atual, Sadam Hussein, que já foi parceiro do pessoal da Casa Branca. - É sem querer, filho. Fica mais fácil assim. Um menino de dez anos jamais entenderia que alguém decida pela guerra agindo tão somente em próprio benefício, que o extermínio de civis inocentes atende a interesses econômicos escusos. Petrodólares, petroeuros... Não ia entrar na cabecinha dele que os ativos de uma mega corporação valham mais do que a vida de uma criança muçulmana. Ou dez. Ou cem. Ou mil. Ele não entende como os idealistas da guerra podem ignorar os milhões que se aglomeram nas ruas em todas as partes do mundo, dia após dia, pedindo pela paz. Rodrigo encara aquilo como a grande torcida de um time pequeno. Tipo o Botafogo do Rio, ou o Palmeiras em São Paulo. Uma metáfora cruel mas bem próxima da realidade. - Quem é que diz quando é que vai acabar essa guerra, pai? A França? O Papa? A ONU??? Percebendo o descrédito na fala do filho, o pai se sente arrebatado por uma enorme tristeza. Um menino que perde a crença na justiça, na bondade, em plena infância não é um bom sinal. Não há mais a quem apelar, não há quem vá nos socorrer, o mundo está impotente e a mercê de sociopatas gananciosos e estúpidos. Perder as esperanças em tão tenra idade... A decepção com a humanidade não é algo bonito de se ver nos olhos de uma criança de dez anos. André Pires |
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