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Segunda-feira, 3/3/2003 O Fel da Caricatura: André de Pádua Jardel Dias Cavalcanti Quem não conhece aquela terrível caricatura que Picasso fez de um galinha? O artista não quis apenas reproduzir a aparência daquele animal: quis expressar sua agressividade, sua insolência e estupidez. Precisou da caricatura para isso. A atração pelo "bizarro" está profundamente arraigado no comportamento estético do homem, e é visível em todo decorrer de sua história, até os dias atuais. O "bizarro" está entre nós e a caricatura é a arte que melhor se presta a desvendá-lo. Para Baudelaire, o caricaturista é um artista de natureza mista: ele é o observador, o flâneur e o filósofo. A sua matéria-prima é o presente como história em ação. Há na vida trivial um movimento rápido que exige do artista uma velocidade igual na execução: o caricaturista é quem interage nesse sentido. O jovem André de Pádua é um dos mais promissores caricaturistas de Campinas. A singularidade do sua obra e o poder de sua linguagem não deixam dúvidas: seu trabalho é rico em intensidade, marcado por um traço retórico extremamente comunicativo e com um humor fatal que nos atinge de imediato. Nos deteremos aqui apenas em uma de suas obras: a monstruosa caricatura da apresentadora de televisão Adriane Galisteu. A obra chega a ser assustadora, tal o grau de deformação com que retrata a apresentadora de TV. Sobre um fundo azul aparece de chofre a figura de Galisteu. O que mais chama a atenção, direcionando nosso olhar, é a boca escancarada com seus dentes sobressaltados. O apelo da apresentadora de televisão, que quer se convencer pela boca, pela falação tagarela insensata, vazia e inútil encontra aqui sua tradução. Sua mão direita é jogada para frente, crispada, num movimento que denota desespero incontido, reforçando a idéia de gestos impensados, indelicados, agressivos (típicos de apresentadores que não querem fazer seu público adormecer diante das mesmices que apresentam diariamente). Sobre um cabelo loiro aparece uma minúscula caixa craniana, revelando, entre outras coisas, a máxima popular que diz que toda loira é burra. Afinal, vale notar que todas as apresentadoras de televisão são loiras... e, talvez por um acaso, burras. Pode-se dize ro mesmo de seu público, que não sendo composto só de pessoas de cabelo amarelo, em geral são muito mal formados. Mas não é só isso, a diferença entre o tamanho do cérebro e a boca explica bem qual o grau de valor sobre o qual a apresentadora se ampara: a falação desenfreada em detrimento de um diálogo inteligente. Seu olho se espreme, criando ainda mais uma idéia de deformidade, junto com bochechas também desproporcionais dentro do conjunto. Nos fica a pergunta: por que esta caricatura nos causa tanto fascínio e ao mesmo tempo tanta repulsa? É porque, diga-se claramente, ela revela algo que desorienta, algo de terrível, de monstruoso. Algo que ao se esconder na pessoa representada, revela-se inteiramente na caricatura. Esta caricatura não precisaria nem da descrição que propomos fazer aqui. Ela é mais eloqüente que qualquer descrição. Não é o ultraje do tempo que deforma a figura de Galisteu. São suas "vis paixões', reveladas e estampadas na obra de André de Pádua, que a faz contorcer-se como um ser abjeto. Parece que ao dar à retratada este rosto asqueroso e ao arrancar dela o disfarce, o artista acredita ter encontrado uma possibilidade de a combater. André não nega a tradição dos grandes caricaturistas que usam a distorção da representação humana, sobretudo do rosto, como um meio de satisfazer a necessidade de expressar ódio ou agressividade em relação a determinadas pessoas. Por isso, não se pode negar, ele está escarnecendo e ridicularizando através da desfiguração da "effigie" de Galisteu. Através das desproporções de partes do rosto - sem grandes preocupações com problemas de mimetismo - ele abusa da sátira. O registro desapiedado de Galisteu nesta caricatura torna-se expressão de uma estupidez abjeta. Para André só existe um raciocínio: se copiasse Galisteu fielmente, estaria prendendo-se na armadilha da mentira. Ele quer encontrar, na forma de uma evidência expressiva, a verdadeira face da retratada. Nesse sentido, ele é perspicaz revelando o estado de alma numa compreensão sem resíduo. Ele sabe encontrar as marcas inscritas no rosto humano, sabe ler seus pensamentos nestas marcas, sabe captar as paixões escusas e ignóbeis que se disfarçam para o mau leitor da expressão facial e torná-las evidentes para todos. O rosto de Galisteu é nessa caricatura um texto hieróglifo que o caricaturista submete a uma decifração exaustiva. Ele lê a cifra verídica das afecções desta alma. Transmuta as perturbações que se escondem neste rosto num idioma sem equívoco. Cada povo e cada época tem a sua própria expressão do ridículo. Na caricatura de André, Galisteu se transforma numa incômoda e diabólica expressão anedótica do ridículo que habita entre nós. André não tem amenidades para com a retratada, ao contrário, é cruel. Mas seu interesse não é apenas a galhofa ou troça. Esse é um dos elementos, mas não o seu todo. Não há dúvida de que a lição de Aristóteles está aqui: "quando se tem de representar certas personagens pela imitação, deve-se, necessariamente, pintá-las melhores ou piores do que são". Para André a questão se aproxima desta máxima aristotélica, mas o "pior" não significa mentir sobre a pessoa retratada, significa tornar evidente o que ela tem de detestável e que deseja desesperadamente esconder. Por isso a caricatura é um verdadeiro instrumento de guerra, não se detendo diante de nenhum poder constituído, pondo à mostra o que há de mais medíocre e de impostura no retratado. Seu desenho, no que ele tem de puramente plástico, serve bem, através da deformação grotesca, para revelar as profundezas medonhas: estupidez, mesquinharia, falsidade, insensibilidade. Em geral características mais dos animais que dos seres humanos racionais. Na Poética de Aristóteles a beleza é concebida como uma excelência na proporção das coisas: o que não é belo é o que não tem perfeição de forma, é deformado, e para isso temos a palavra latina "turpitude" (torpeza). O feio é, então, uma questão de forma, de deformidade, de falta de graça. A palavra caricatura vem do inglês caricature que, por sua vez, veio do italiano significando carregar, adulterar, exagerar. Na caricatura a feiúra é uma qualidade do grotesco, de algo mal formado, defeituoso, mas não necessariamente antiestético. O que é um paradoxo: o artista transfigura um rosto aparentemente normal em algo inerentemente feio ou repugnante e dando-lhe todo o cuidado de sua técnica, dando-lhe valores estéticos de cor e composição, transforma o objeto feio criado numa bela obra de arte. Sendo assim, o grotesco da figura é desenhado com tal habilidade e delicadeza que nos perdemos na admiração da maneira, e até não reagimos ao horror do motivo. A arte, por esse meio, cria uma "distância" estética entre a crua representação e nossa percepção. Se não se tratasse de uma obra, mas de um caso real, a coisa seria diferente. Se nos encontrássemos na rua com uma figura como Jader Barbalho, tal qual se apresenta na caricatura feita por André, com certeza ficaríamos em estado de terror. Como suportar tal figura, na nudez de sua monstruosidade, assim exposta em público, sem tomar uma atitude drástica de a combater com veemência? Idéias de deformidade enchem nossa mente de fortes emoções de terror. Por isso, sabemos o que rostos como o de Galisteu, Jader Barbalho e ACM significam: toda a hediondez, toda a sordidez moral, todos os vícios que o espírito humano pode conceber estão escritos sobre essas faces - que, através do procedimento adotado pelo caricaturista, os coloca não próximos à idéia de uma raça humana, mas de verdadeiras bêstas-feras. A caricatura de André atravessa tudo, como uma luz de um relâmpago. Chega rapidamente ao cruel, com fantasias grotescas que contêm, amiúde, algo de sombrio. O rosto de Galisteu apresenta-se brutal e violento, em gestos faciais deformados e extravagantes. Há contrastes violentos entre os tamanhos da cabeça, dos dentes, das mãos e dos olhos. Mas o maior mérito ainda pode ser medido pela sua capacidade de criar, numa figura tão monstruosa, a verossimilhança. O caricaturista não abandona nenhuma intuição, busca encontrar o vulgar e o trivial. O que se pode chamar de o fascínio da corrupção penetra em cada camada deformada. Mesmo se não soubéssemos a trajetória de Galisteu: amparo nas costas de Airton Senna, exposição em revistas masculinas e o conseqüente emprego de apresentadora de TV. Mesmo desconhecendo esta trajetória, intuiríamos alguma monstruosidade escondida atrás da fachada de seriedade. Por esse retrato de Galisteu pode-se perceber que a caricatura de André de Pádua não é tímida, ao contrário, faz ousadamente jorrar as formas bizarras. Consegue unir o disforme e o horrível ao cômico. O que a caricatura revela é uma verdade alargada para além da "aparência visível". Por isso, não adianta fechar os olhos com força para não ver o que a caricatura revela. Há ainda caricaturas mais ácidas, como de políticos como ACM (ver abaixo) e Jarbas Barbalho, do pseudo-escritor (e falso mago) Paulo Coelho, enfim, uma fauna que se revela a cada obra de André de Pádua. A referência a uma obra de Picasso não é casual, aquela galinha irritante cacarejando com sua goela arreganhada é a imagem perfeita que pode traduzir o sentido da caricatura que André fez de Galisteu. Para ir além www.animar.com.br [email protected] Jardel Dias Cavalcanti |
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