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Sexta-feira, 11/4/2003
Demônio maniqueu e demônio agostiniano
Gian Danton

Os autores cibernéticos encontraram nos demônios agostiniano e maniqueu metáforas apropriadas para compreensão das diferenças entre os fenômenos naturais e sociais.

O maniqueísmo, religião babilônica, acreditava que o universo era governado por duas forças antagônicas, uma boa e outra má.

O termo sobreviveu como sinônimo de uma separação rígida entre dois pólos antagônicos. Diz-se, por exemplo, que os gibis de super-heróis são maniqueístas, pois os heróis são totalmente bons e bem intencionados. Os vilões, ao contrário, são totalmente maus. Não há meios-tons.

Mas o que nos interessa é como os maniqueístas viam essa força negativa. Para eles, o demônio era astuto o bastante para mudar de estratégia, caso sua vítima lhe percebesse o ardil.

Imaginemos que o demônio maniqueu colocasse uma casca de banana à porta de um homem. Este, assim que saísse de casa, escorregaria, e soltaria uma série de palavras impublicáveis, para regozijo do demônio.

Isso acontece por dias seguidos, até que o homem, cansado da brincadeira, resolve sair pela janela.

O demônio, percebendo a mudança, passaria a deixar a casca de banana abaixo da janela, até que surgissem novos fatos que o forçassem a mudar novamente de estratégia.

Santo Agostinho, ao contrário, achava que o demônio seguia leis divinas, das quais não podia escapar. O demônio não poderia blefar ou mudar de estratégia.

Foi esse tipo de pensamento que permitiu a Henrick Kramer e Jacobus Sprenger escreverem o livro "Malleus Maleficarum", verdadeiro manual dos inquisidores.

O objetivo era descobrir como agia o demônio e seus agente temporais, as bruxas, indicando a melhor forma de combater a ação destes.

Os títulos de alguns capítulos falam por si: "Métodos Diabólicos de Atração e Sedução"; "Como as bruxas podem inflingir enfermidades graves"; "Métodos para destruir e curar a bruxaria".

legenda

Jamais ocorreria a tais autores que o demônio, percebendo que seu modo de ação fora descoberto e dissecado, pudesse mudar de estratégia.

O demônio agostiniano são os fenômenos naturais. Eles seguem leis rígidas, das quais não podem escapar. Se solto uma pedra, ele, incapaz de desobedecer à lei de gravitação universal, cairá, atraída pela Terra. A pedra não cogita flutuar no ar apenas para contrariar minhas expectativas.

Posso dizer "A pedra irá cair" sem medo de ser desmentido pela pedra.

O mesmo já não ocorre com fenômenos sociais.

Imaginemos um aluno relapso sobre o qual o professor faz a seguinte previsão: "Você não será aprovado, pois não estuda". Ele pode se deixar abater pela previsão e desisitr plenamente de ser aprovado. Mas, por outro lado, poderá estudar com mais afinco, para provar que o professor estava errado.

Quando se trata de seres humanos, podemos fazer previsões auto-destrutivas e auto-realizadoras.

Um jornal que estampe uma previsão de inflação fará com que os consumidores corram para estocar produtos antes do anunciado aumento de preços. O aumento da demanda fará com que os vendedores aumentem o preço das mercadorias. Talvez a inflação não tivesse ocorrido se o jornal não a tivesse anunciado.

É fato sabido que nenhum banco tem em caixa dinheiro o bastante para cobrir a retirada de todos os seus correntistas. Se corre o boato de que o banco irá falir, haverá uma corrida ao mesmo. O excesso de saques deixará a instituição sem capital e, portanto, falida. Mais de uma empresa bancária já fechou suas portas em decorrência de previsões auto-realizadoras.

Os fenômenos naturais são demônios agostinianos: jogam um jogo difícil, mas, uma vez decobertas suas leis, eles não a mudarão apenas para nos contradizer ou agradar.

Os fenômenos sociais, ao contrário, são demônios maniqueus, pois o fluxo de informações pode fazer a sociedade ou grupos mudarem de comportamento.

Como um jogador de pôquer, a sociedade muda seu comportamento e suas estratégias.

As investigações de Karl Marx sobre a sociedade capitalista foram muito acuradas, mas não servem para nossos dias, pois o capitalismo se utilizou dessas mesmas análises para se transformar e, portanto, sobreviver.

Segundo Nobert Wiener, comparado ao demônio maniqueu, dono de refinada malícia, o demônio agostiniano é estúpido. Joga um jogo difícil, mas pode ser derrotado completamente pela inteligência e pela observação.

A metáfora dos demônios maniqueu e agostiniano faz cair por terra a falácia de pesquisadores do início do século XX que pretendiam investigar os fenômenos sociais com as mesmas ferramentas e a mesma lógica com que se investiga a natureza.

Para pesquisar tais fenômenos, surge uma nova teoria, parte da cibernética, chamada teoria dos jogos.

O jogo praticado pela sociedade constantemente é do tipo soma-zero, em que os ganhos de uma parte revertem em perdas para o outro lado.

É o que ocorre, por exemplo, nos casos de dominação política: uma vitória do dominador transforma-se em perda para o dominado.

Sabe-se que a dominação política e econômica é baseada no conhecimento do homem sobre o homem. Em especial o conhecimento sobre como a sociedade dominada age. Nesse caso, interessa aos dominados agirem como demônios maniqueus, o que torna inútil esse conhecimento.

O melhor exemplo desse tipo de comportamento é a guerrilha. A guerrilha não respeita as regras dos conflitos armados: ataca de surpresa, em pequenos grupos que escapam rapidamente de uma posterior perseguição.

Os terroristas também agem como demônios maniqueus. O ataque às torres gêmeas do Word Trade Center é um exemplo perfeito de demônio maniqueu.

Os EUA estavam muito preocupados com a criação de um escudo anti-mísseis, que tornasse inviável qualquer ataque aéreo às cidades americanas.

Os terroristas atacaram justamente de onde os militares norte-americanos não esperavam nenhum ataque. Eles seqüestraram aviões comerciais, de transporte de passageiros, e os jogaram sobre os alvos.

Para sequestarem os aviões, os terroristas usaram facas. Um comportamento absolutamente imprevisível e, portanto, maniqueu: atacar a maior potência militar do planeta utilizando apenas facas!

O inusitado da ofensiva foi justamente a característica que permitiu o ataque possível.

Gian Danton
Macapá, 11/4/2003

 

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