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Segunda-feira, 10/3/2003
Empolgação
Arcano9

Oi. Tudo bem? São quase nove e meia da noite e hoje choveu praticamente o dia inteiro por aqui. Apenas a luz do abajur do meu quarto está acesa, e eu nunca havia percebido o quanto essa luz, só ela, transforma meu quarto num lugar confortável. Um lugar onde dá gosto pegar minha canequinha com chá de camomila, ligar o computador e escrever para vocês algumas palavras.

A possibilidade dessa guerra maldita acontecer está mudando a vida de todos por aqui, e sinto que a maioria não percebeu ainda exatamente o que essas mudanças indicam. Vi uma reportagem na TV agora há pouco. Um repórter no Kuwait, num acampamento de tropas britânicas, jovens serelepeantes vestidos com suas roupas de camuflagem e falando grosso. "É uma aventura", fala um deles, com um sorriso largo no rosto. "Estamos muito empolgados".

Minha vida não é tão empolgante, mas hoje e ontem, pelo menos, saí da modorrenta redação e fui a Salisbury, a cidade medieval em Wiltshire (condado a oeste de Londres) mais conhecida por ser um dos campos-base para visitação do Stonehenge, além de abrigar uma maravilhosa catedral. Fui mandado para lá porque existe a possibilidade de eu ser enviado para o Oriente Médio para cobrir a guerra e, provavelmente, entrevistar o energético recruta britânico, traduzindo o espírito às vésperas e durante o tudo ou nada contra Saddam Hussein. Em Salisbury, me juntei a um grupo de 15 jornalistas, alguns canadenses, um australiano, vários britânicos e uns brasileiros como eu.

O curso foi fora da cidade, numa área rural povoada por lindas ovelhas e montes de feno. O táxi foi nos conduzindo suavemente pelas curvas de uma estradinha, cruzando planícies e pastos e o cheiro da chuva no mato. Faz tempo que aquele interior não via um ser tão urbano como eu. Mas o meu momento de reencontro com o universo das fazendas durou pouco: o táxi parou em frente a um dos centros de treinamento do exército britânico. Um complexo com casinhas construídas a partir da Primeira Guerra Mundial, algumas muito velhas, outras reformadas e outras, ainda, mais recentemente construídas. Ao lado delas, duas casinhas com singelas e acolhedoras câmaras de gás, onde os soldados empolgados aprendem a usar máscaras de proteção contra substâncias irritantes e tóxicas. Antevendo o pior no Golfo.

No curso, o professor, um inglês com forte sotaque e muita animação, nos iniciou nos coloridos sonhos gasosos de ditadores como Saddam. Nos multifragmentados sonhos das bombas de Hiroshima e Nagazaki, delicadamente depositadas nessas cidades pelos americanos no final da Segunda Guerra Mundial. Os americanos que hoje estão com ciúme dos coloridos sonhos gasosos de Saddam. E preocupados com os possíveis multifragmentados sonhos nucleares que o líder iraquiano possa ter.

Crianças, tsc, tsc. Não briguem. Tem para todo mundo. Um sonho para cada um de vocês. Sonhos poderosos, cheirosos, com o aroma de mil rosas cor mostarda.

Aprendemos o básico, mas o necessário: o professor, entre uma piadinha e outra, nos explicou para que existem quatro tipos de armas químicas. Como diz o nome, os agentes nervosos, como o gás VX, incapacitam o sistema nervoso central. Uma substância vital na comunicação entre o cérebro e os músculos do corpo deixa de funcionar, e a pessoa perde o controle sobre si mesa. Tem convulsões, urina e defeca involuntariamente, fica com a pupila contraída até quase explodir. Aí, morre.

A segunda modalidade de arma química é a que causa ferimentos na pele. O gás mostarda, por exemplo: o vapor ou o líquido contido nas bombas de gás mostarda tocam na sua pele e o efeito é rápido. Ela coça, ela estoura, ela vaza vermelho. O efeito é pior se pegar nos olhos e na boca. A pessoa tem a sensação de estar se desfazendo. Lentamente, com uma dor alucinante, vai dando adeus ao mundo de Saddam Hussein e George W. Bush.

O terceiro tipo de arma química é aquele que mexe com os fluídos do corpo. Faz com que fluído se acumule nos seus pulmões, e você termina se afogando com sua própria água. Você se afoga no meio do deserto. O quarto tipo, por fim, afeta a capacidade das células em absorver oxigênio. Os órgãos mais rapidamente afetados são o coração e os pulmões. O coração geralmente pára entre seis e oito minutos após a exposição. Um exemplo de agente desse tipo é o cianeto.

Temos as armas biológicas. Que tal uma varíola? Você lembra o que é? Seu rosto e seu corpo ficam cobertos de bolhas purulentas, você sente febre e calafrios, fica sujo e abominável e contagioso e deveria ser queimado vivo antes de contaminar outras pessoas. Temos as armas nucleares. O professor, empolgado, fala que, no kit de sobrevivência que nossos chefes vão nos dar antes de nós irmos à guerra, vamos encontrar um pó mágico. Um talco para descontaminação. Você passa o talco nas superfícies que você acredita que foram afetadas pela radiação, se chacoalha e pronto. Contanto que você esteja em uma área segura, sem mais exposição às partículas subatômicas letais, você está salvo. Oh, desculpe, esqueci: a descontaminação te ajuda a se livrar das partículas alfa e beta. Quanto aos raios gama, a menos que você tenha se escondido em uma caverna de chumbo, esquece. Você foi exposto a eles e não há nada que possa fazer. Espere uma leucemia. Ou um filho deformado, para o qual (se ele tiver ouvidos e orelhas) você poderá contar histórias da Guerra do Golfo II.

Aprendi a usar a máscara para não inalar os gases e partículas. Aprendi a usar o traje, as luvas, as botas. Vi fotos de experimentos envolvendo uma pobre cabra e o gás VX. Vi fotos de iranianos que, durante a Guerra Irã-Iraque (na década de 80) foram expostos ao gás mostarda de Saddam. E não sobreviveram, depois de sofrerem lacerações indescritíveis no rosto. Também aprendi que a máscara, o traje, as luvas e o resto do equipamento provavelmente vão me salvar. E eu vou estar em uma situação privilegiada para ver as pessoas se arrastando a meus pés, sem poder respirar, pingando de sangue, gritando, implorando para que eu as salve. E eu, eu vou entrevistá-las, provavelmente. Talvez falando o que elas pensam da guerra elas possam se sentir melhor.

Esses cursos para jornalistas são, compreensivelmente, um imenso sucesso por aqui. Caríssimos (uma empresa americana, a Servamer, cobra US$ 20 mil por três dias de curso), eles são ministrados geralmente por pessoas que têm antecedente militar e se especializaram em dar segurança em situações de risco como essas. São pessoas acostumadas a falar dos efeitos desagradáveis de armas de destruição em massa da mesma forma que um enólogo fala de um bom vinho. Obviamente, eles também não gostam do que vêm, e não têm culpa por nada do que está acontecendo. Estão fazendo seu trabalho, como nós, jornalistas, temos que fazer o nosso. Na saída do curso, quando voltamos os olhos para o céu cinzento de Wiltshire, uma colega minha me perguntou se eu não achava que todos os que trabalham conosco deveriam ser treinados e ter a oportunidade de poderem ser enviados à guerra. Eu disse que não sabia. Ela, com uma feição de desaprovação e desprezo no rosto, me disse que algumas pessoas, aparentemente, não queriam trabalhar na cobertura da guerra, ou pelo menos não haviam manifestado empolgação com a possibilidade de ver um momento histórico como esse. Minha colega foi além, deu a entender que cobrir uma guerra é algo bom para a carreira de um jornalista, e faz você uma pessoa mais rica, mais vivida. É, para muitos, um sonho.

Eu não disse nada.

****

Agora, são exatamente onze da noite. O abajur continua aceso e, num breve intervalo nesta minha carta para vocês, li mais um capítulo do livro que me acompanhou em cada um dos intervalos do curso em Salisbury: A Box of Matches, de Nicholson Baker (Chatto & Windus, 2003, 10 libras). Dele, eu já havia lido Fermata (publicado no Brasil na Companhia das Letras em 1994) e, em ambos os livros, este notável romancista parece ter uma obsessão maravilhosa: mostrar, quantas vezes for preciso, o prazer das pequenas coisas do nosso dia-a-dia. Aquelas coisas que há muito tempo nem mais percebemos que temos ao nosso redor: uma caminha quente, um televisor com imagens nítidas, um parque na esquina, um filho inteligente, uma esposa sorridente, um cachorro sapeca, uma feira livre com as frutas mais diversas e frescas, uma barraquinha de pastel, um shopping center com restaurantes gostosos, seus amigos para jogar um carteado, seus pais para te lembrar da sua infância, sua saúde, seu corpo capaz de pular, de dançar, de fazer amor.

No caso de A Box of Matches, o personagem principal, um homem de meia-idade perturbado por idéias suicidas, descobriu um prazer que eu nunca percebi que existia: o prazer de levantar cedo. Em cada capítulo, ele levanta por volta das quatro da manhã, justamente quando os sonhos estão a mil por hora na cabeça da maioria das pessoas. Em meio ao silêncio e às sombras de sua sala de estar, enquanto sua esposa e filhos dormem e ele sorve seu café quente, o personagem nota as cores da escuridão, os brilhos multifragmentados das estrelas, e reflete sobre coisas banais.

Apago o abajur. Em algum lugar além deste quarto, pessoas têm sonhos agitados. Correndo por um deserto com uma arma em punho. Correndo atrás do que está realmente acontecendo para contar para todo o mundo. Correndo contra o tempo para realizar o ataque perfeito. Correndo para destruir armas ou construir mais. Correndo sem conseguir mais correr. Em algum lugar além deste quarto, pessoas têm sonhos agitados, mas eu prefiro não sonhar.

Pensando bem, isso é bem empolgante.

Para ir além
Leia meu texto Ganha-pão, sobre o conflito no Oriente Médio

Arcano9
Miami, 10/3/2003

 

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